Bloco Central junta PS e PSD

Austeridade. A crise económica de 1983-1985, que obrigou à intervenção do Fundo Monetário Internacional e a uma austeridade a que o País, à época, não estava habituado, originou um Governo de maioria parlamentar esmagadora, mas quase matava a ambição de Soares ser Presidente da República
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Desde a morte de Sá Carneiro, a Aliança Democrática entre PSD, CDS e PPM estava a desintegrar-se. Em dezembro de 1982, Pinto Balsemão demite-se do cargo de primeiro-ministro e Freitas do Amaral da presidência do CDS. Perante este cenário, Ramalho Eanes decide dissolver a Assembleia da República e convocar eleições para 25 de abril. Depois, o CDS elege Lucas Pires como presidente e o PSD escolhe para líder Mota Pinto. Entretanto, Mário Soares consegue que o PS - embora sem o apoio de vultos como Salgado Zenha, Vítor Constâncio ou António Guterres, que, na sequência do anterior congresso, nem sequer tinham sido integrados nas listas de deputados (Uma Vida) - assuma que a coligação PS/PSD era o instrumento de um "grande projeto nacional interpartidário".

A cumplicidade entre ambos era antiga. Afinal, Mota Pinto - que abandonou o PSD, em rutura com Sá Carneiro, em dezembro de 1975, só se reconciliando os dois no fim da década, sendo então o catedrático de Coimbra mandatário nacional da candidatura presidencial do general Soares Carneiro - tinha-se estreado como governante com... Soares: no I Governo Constitucional (1976-1977), sucedendo a António Barreto (que assumira a pasta da Agricultura), foi ministro do Comércio e Turismo.

Mota Pinto "era partidário, havia longa data, de um governo de coligação entre os dois maiores partidos" e "quis fazê-la antes das eleições" (Um Político Assume-se), mas Mário Soares combinou que concorreriam separados e, quem vencesse, seria primeiro-ministro. Na campanha eleitoral, como lembraria a Teresa de Sousa, o líder socialista até citava Churchill para explicar que, naquela altura, só podia prometer "sangue, suor e lágrimas" (Portugal Tem Saída). O PS triunfou, Soares formalizou o convite e, a 9 de junho de 2003, Ramalho Eanes empossava o IX Governo Constitucional, que ficaria para a história como o Bloco Central.

"Quando o PS regressa ao poder em 1983 - em antecipação provocada, antes do momento ideal, para nós -, volto a deparar com uma segunda e ainda mais grave crise financeira. Foi a herança do Governo de Sá Carneiro, em que foi ministro das Finanças o prof. Cavaco Silva" (Diálogo de Gerações). No fundo, como regista Rui Ramos na sua História de Portugal, "a recessão de 1983-1984 foi a mais grave desde a Segunda Guerra Mundial" e "o desemprego chegou aos 10%".

Logo na apresentação do Programa do Governo, na Assembleia da República, Mário Soares sublinhava que, conhecida a "gravíssima crise económico-financeira com que o País se debate", a prioridade era um "programa de gestão conjuntural de emergência". Referia que "os desequilíbrios financeiros, o volume e o ritmo do endividamento externo exigem, a fim de evitar ruturas perigosas para a própria independência nacional, medidas imediatas de austeridade e de rigor, cujas necessidades e urgência ninguém de bom senso e com algum sentido patriótico poderá sequer contestar". E "haverá a necessidade, porventura, de podermos recorrer a instâncias internacionais de crédito".

Nessa altura, quase ninguém sabia quem era Ernâni Lopes, o ministro das Finanças sob cuja batuta iria negociar-se o empréstimo com o FMI que acabaria por restabelecer os equilíbrios financeiros. Nessa época, "fomos um bom exemplo, apontado frequentemente pelo FMI, de persistência e recuperação" (Intervenções - 7).

Embora falando em "medidas duras", Mário Soares prometia que a austeridade não seria "cega". O que, nos tempos seguintes, com a insólita situação de salários em atraso e a denúncia do bispo de Setúbal de que havia fome no seu distrito, não se iria verificar. Álvaro Cunhal, em entrevista a Maria João Avillez, acusaria o líder socialista: "O dr. Mário Soares propôs uma mudança em relação à política da AD e, no fim de contas, foi-se entender com o PSD para fazer a política da AD agravada" (Conversas com Álvaro Cunhal). Como escreveria, com fina ironia, Alfredo Barroso, dez anos depois de ter sido secretário de Estado adjunto da Presidência do Conselho de Ministros, "longe vão os tempos do chamado "governo do Bloco Central" - uma coligação entre socialistas e extraterrestres [alusão ao facto de o PSD, nas eleições seguintes, não ser castigado pelo eleitorado devido à austeridade desta época] - em que, ao mínimo sinal de dores de estômago, saltavam as bandeiras negras, do lado esquerdo, e o clamor das "reformas estruturais", do lado direito, ao mesmo tempo que, para os lados de Belém, se esfregava as mãos de satisfação e se desenterrava, pela enésima vez, o "machado de guerra". Ao plano de emergência para a região de Setúbal, então organizado pelo "Bloco Central", até chamaram, com sarcasmo, a "sopa do Barroso" [invocando a "sopa do Sidónio" Pais ou a "sopa dos pobres"]" (Janela Indiscreta).

O líder desse Executivo também recordaria, vinte anos depois, no livro O Que Falta Dizer, que "[cobriu]completamente a política de Ernâni Lopes". E foi mesmo mais longe, pois "os momentos mais difíceis [quando foi do corte do 13.º mês, quando foi dos aumentos da gasolina, etc.]não os [deixou] ao ministro das Finanças, [foi ele, Mário Soares, que veio] à televisão falar".

Ainda na sessão na Assembleia da República, Mário Soares admitia claramente a alteração à Lei da Delimitação de Setores (abriria aos privados banca e seguros, indústrias de adubos e de cimentos) e anunciava a criação do Conselho Económico e Social e da Alta Autoridade contra a Corrupção. Além da adesão à CEE (ver texto ao lado), no tempo do Bloco Central foi ainda criado o Serviço de Informações de Segurança (SIS) e renovado o acordo das Lajes (com verbas para a criação da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento), a CGTP multiplicou manifestações e vigílias, o CDS apresentou uma moção de censura e os eanistas fundaram o PRD - que iria obter 18% dos votos nas legislativas seguintes, obrigando o PS a quedar-se por uns humilhantes 20,8%.

E também foram desmanteladas as FP-25, que levariam Otelo à prisão, quando Mário Soares julgou que Joaquim Dias Lourenço, o nome que encimava a lista apresentada pelo diretor-geral da PJ, em vez de um discreto militante da FUP (partido que era apresentado como a face legal da organização terrorista, que tinha cometidos vários atentados), seria o diretor do Avante! e um dos mais importantes dirigentes do PCP.

E é o próprio Otelo quem admite que "nada [lhe] custa a acreditar que o primeiro-ministro tenha ficado profundamente consternado quando recebeu, em Tóquio, o telex anunciando-lhe a detenção. Não só porque, a verificar-se a [sua] culpabilidade, ficava gorada a expectativa da incriminação do PC como criador e mentor das FP-25, como também porque, apesar das irrecusáveis divergências políticas e ideológicas que entre [eles] se verificam, existe entre ambos uma empatia e uma consideração mútuas que são conhecidas"(Acusação e Defesa em Monsato).

Com efeito, revelará a Teresa de Sousa, de facto"[teve] sempre um certo fraco por Otelo. O seu lado quixotesco e quimérico tornava-o (...) mais simpático do que inquietante. Sempre [lhe] pareceu uma personagem genuína e espontânea, um militar corajoso, mas um péssimo político" (Os Grandes Líderes). Essa amizade terá sido logo construída "durante a longa viagem até Lusaka", em 1974, para negociarem com Samora Machel (Uma Vida).

E só no segundo mandato presidencial conseguiria solucionar o processo do "herói da revolução". Desde 1991, recebeu em audiência a Comissão Pró-Amnistia do Caso FUP/FP-25, familiares e advogados dos presos. Tentou sensibilizar os líderes parlamentares para uma amnistia e acabou por dirigir uma mensagem à Assembleia da República. A maioria de esquerda aprovaria a amnistia, com a direita contra (o PSD pediria a inconstitucionalidade da lei, mas o TC não lhe deu razão), e o diploma seria promulgado "três dias antes de Soares abandonar o Palácio de Belém" (idem).

Mas o entendimento com Mota Pinto seria sempre enaltecido por Mário Soares. Nem sequer se desentenderam com "certo problema cómico": o socialista "tinha a mania, durante os Conselhos de Ministros, de descalçar os sapatos; [o social-democrata] também fazia o mesmo e, como [estavam] ao lado um do outro, duas ou três vezes, [trocaram] os sapatos" (O Que Falta Dizer ). E Bernardino Gomes, chefe de gabinete do então primeiro-ministro, confirmava essa "cumplicidade enorme": "Eram iguais" (Uma Vida).

De resto, "só tivemos uma dificuldade, que não chegou a ser séria. Foi a Lei da Despenalização do Aborto, imposta num congresso do Partido Socialista. Lembro-me muito bem disso. Eu estava fora da sala do [V] Congresso a falar com alguns amigos, descontraído, por pensar que se estavam a debater assuntos de rotina. De repente, vieram dizer-me que o Congresso estava incendiado com a despenalização do aborto [a moção de Maria Belo seria aprovada]. Foi um caso sério, porque havia no Governo de coligação PS-PSD alguns membros que eram completamente contra a despenalização do aborto ["ministros de missa diária", precisaria em Um Político Assume-se]. A política é assim. Mais tarde, consegui convencer Mota Pinto de que a questão não era um problema do Governo, mas sim dos partidos e que devia ser debatido no quadro do Parlamento. Cada partido e cada deputado votaria como quisesse. O Governo ficava à margem disso. E foi assim. Graças a Mota Pinto, homem aberto, inteligente e humanista: um político exemplar e um amigo do coração" (Portugal Tem Saída).

Onde Mário Soares se enganou, no seu discurso parlamentar de 1983, foi na previsão de que havia "condições políticas para que se trat[ass]e de um Governo de legislatura". Após a demissão de Mota Pinto (que morreria pouco depois), provisoriamente substituído por Rui Machete, no Congresso do PSD da Figueira da Foz, quando a disputa parecia ser entre o líder interino e João Salgueiro, surgiu Cavaco Silva, alegando que só tinha ido fazer "a rodagem ao carro" novo, que propôs o apoio a uma candidatura presidencial de Freitas do Amaral e foi eleito a 19 de maio de 1985. E, a 4 de junho, o novo presidente do PSD provocava o fim do Bloco Central.

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