Black Panther: a magia africana chegou à Marvel
A máquina não descansa nem perde tempo. Ou, por outras palavras, está aí um novo super-herói do universo Marvel. A pergunta impõe-se: será ainda possível reinventar conteúdos nesta lógica de linha de montagem? Depois do colorido e ligeiro Thor: Ragnarok, que tentou dar alguma chama à fatigante saga do deus do martelo, Black Panther é a aposta dos estúdios numa produção de inédita fibra cultural e identitária. E nesse sentido, sim, parece que ainda é possível alimentar uma fórmula com imaginários que, pelo menos, renovam a atmosfera narrativa. Trata-se afinal do primeiro super-herói de descendência africana, que se faz acompanhar de um elenco predominantemente negro, num filme cuja assinatura do afro--americano Ryan Coogler surge como a cereja em cima do bolo da black experience.
É, aliás, sob o signo da especificidade cultural que tudo se enforma. Transferindo para a estrutura do blockbuster o ADN da vivência dos negros - que já era abordada nos seus filmes anteriores, Fruitvale Station (2013) e Creed: O Legado de Rocky (2015) -, Coogler oferece algo de muito genuíno a este cenário eminentemente digital. Com uma boa dose de afrofuturismo, cores vibrantes, estética tribal e música (com curadoria de Kendrick Lamar) correspondente à textura garrida das imagens, Black Panther é uma delícia para os olhos e um estímulo para os ouvidos. Mas tem ganas para ser mais do que isso.
Visto pela primeira vez no grande ecrã em Capitão América: Guerra Civil, T"Challa (Chadwick Boseman), o protagonista do novo enredo, é mais um membro da grande família Marvel, nascido nas bandas desenhadas de Stan Lee, pela arte gráfica de Jack Kirby. Ele é o sucessor ao trono de Wakanda, um país fictício situado algures entre a Somália, o Quénia e a Etiópia, que esconde, debaixo da aparência terceiro-mundista, a sociedade com tecnologia mais avançada do planeta. Na missão de dar continuidade ao legado do pai, terá de enfrentar decisões que mexem com a própria manutenção desse segredo de um eldorado: deve manter as fronteiras fechadas, escondendo a sabedoria e a prosperidade do seu povo, ou, pelo contrário, deve criar pontes para as partilhar com o resto do mundo? A questão é atual e dá um toque político às múltiplas acrobacias que estão por vir.
A razão de tal progresso tecnológico está num metal raro chamado vibranium (o mesmo que compõe o escudo do Capitão América), que faz mover dois vilões em torno do super-herói: um tem o rosto de Andy Serkis, que poucas vezes vemos sem uma complexa maquilhagem digital, e o outro tem laços de sangue com T"Challa e é interpretado pelo ator fetiche de Coogler, Michael B. Jordan. Atente-se também à riqueza do restante elenco, onde encontramos a talentosa Lupita Nyong"o (por quem bate o coração de T"Challa), o ator de Foge, Daniel Kaluuya, Forest Whitaker e Martin Freeman.
Entre a ficção científica, o filme de espionagem, o drama familiar e muita ação, Black Panther é um remix de registos que funciona bem na essência, embora não sustente uma qualidade geral. A saber, aqui reside o calcanhar de Aquiles desta megaprodução: apesar do deleitável ritmo e da bela confluência do moderno e do tradicional, do futuro e do misticismo, há uma fragilidade na exposição narrativa que torna quase tudo episódico, com diálogos básicos e um excesso de sequências de luta, não especialmente bem orquestradas e na linha dos videojogos...
T"Challa diz a certa altura, introduzindo-nos o admirável mundo de Wakanda: "Nunca me canso disto." E a verdade é que Ryan Coogler, com a ajuda de um robusto design de produção, começa por conseguir provocar no espectador essa sensação de deslumbre renovado e autêntico. Mas faltava mais um pouco desta força de contemplação e menos de exibições técnicas e marciais, para a energia da experiência afro ficar mesmo colada à pele.