Biografia para um José Afonso octogenário
JOSÉ AFONSO faria 80 anos no primeiro domingo de Agosto. No imaginário das gerações que assistiram à sua vida criativa não há grandes hipóteses de o separar do palco da música de intervenção apesar de este rótulo provocar algum desagrado no compositor. Nada que pudesse evitar porque desde cedo várias gerações que ouviam os seus discos dificilmente separariam os temas de Cantigas do Maio, por exemplo, dessa atitude contra um regime político que punha a polícia política a morder as suas canelas sempre que podia encontrar um pretexto. Não é por acaso que José Afonso nunca estava certo de chegar aos espectáculos marcados porque sabia que os agentes perscrutavam a sua agenda e só se não pudessem evitá-la é que permitiriam a sua actuação.
Em forma de comemoração, a editora Temas & Debates reedita agora a Fotobiografia de um dos cantores populares que mais marcaram a música da metade do século XX, com a assinatura de Irene Flunser Pimentel, investigadora por norma associada a outro género de pesquisas históricas, que deste modo garante algum distanciamento no volume que escreveu. Esta Fotobiografia traz, para além de uma definitiva sistematização da iconografia em redor do cantor, uma série de novas imagens até agora desconhecidas do grande público, como acontece quer a nível fotográfico quer documental.
DIVIDIDA em onze capítulos, esta Fotobiografia faz uma exaustiva perseguição ao percurso de vida de José Afonso de um modo cronológico. Depois de uma introdução onde apresenta o compositor pelo olhar de quem muito o entrevistou ou biografou, a autora irá descrever e explicar os cenários que marcaram e destinaram a sua vida. Não pode deixar de iniciar o volume com uma análise que dá o tom a uma opção de vida: «Num tempo de grande incerteza e insatisfação para a sociedade portuguesa, o poeta e cantor José Afonso ousou anunciar a possibilidade de um mundo diferente, mais justo, fraterno e equilibrado.» A ilustrar esta primeira página está a capa do EP onde se incluía a canção Grândola, Vila Morena (que, curiosamente, era uma Grandola sem acento circunflexo), tema que se colará ao cantor como mais nenhum outro que tenha composto por ter sido uma das senhas da Revolução de Abril.
A comparação com os grandes autores-intérpretes da última metade do século passado é outra das premissas de onde esta Fotobiografia parte. Nomes como Bob Dylan, Jacques Brel, Chico Buarque ou Joan Baez são alguns das figuras desse mundo de intervenção onde José Afonso pode ser posto ao lado devido à personalidade que desenvolveu na canção e na actuação social. Tal como Woody Gunthrie ou Atauhalpa Yupanqui, também o português soube reinterpretar o cancioneiro popular para daí atingir uma composição revolucionária de uma música que atraía pessoas de todas as gerações e ouvidos. É esse saber pegar no tradicional para cantarolar de forma original, baseado em poemas que criava repentinamente, que o torna diferente dos cantores dessa época nacional e lhe proporciona o estatuto de protagonista único na música popular portuguesa.
A JOSÉ Afonso não se poderá retirar jamais um cravo vermelho da mão porque esse é um dos elementos mais identificadores da sua obra. Não será por acaso que, durante os anos que antecederam e sucederam o 25 de Abril de 1974, José Afonso sempre lutou para que a indignação permanecesse no espírito dos portugueses e que a mudança fosse uma componente intrínseca dos que habitam este país. Tal não aconteceu e, quase quarenta anos após Traz Outro Amigo Também, os seus versos e desejos são História e não prática, mas essa é uma situação que nenhum cantor de intervenção pode impedir. De qualquer modo, as suas modas de protesto ainda estão nos ouvidos de muitos e um dia poderão estar no protesto contra as modas.
Para José Afonso a música era um meio que complementava os esforços de mudança de um regime político que a contestação faria cair. Considerava que a canção tinha por obrigação sublinhar certos factos políticos e deveria ter funções de esclarecimento e agitação política. Era anti muitas coisas mas o que mais o irritava era o autoritarismo e, mesmo sabendo que o seu pensamento era utópico, acreditava que essa utopia radical o colocava na linha da frente dos agentes da mudança. Viveu uma espécie de guerra com o fascismo e continuou a viver uma crise de identidade com as diferenças irreconciliáveis entre a esquerda pós-revolução. Para José Afonso era impensável não se dar com as várias esquerdas e não tentar encontrar plataformas de entendimento que passassem para além das suas canções. Mas, com a evolução política dos acontecimentos, dificilmente terá morrido sem a crença de que seriam as suas canções a única forma de unir pensamentos e práticas diferentes num mesmo quadrante partidário.
Se houve quem dissesse que o cantor era uma espécie em vias de extinção, por ser um homem livre, o certo é que a sua mensagem passou até hoje por via dos gatafunhos de onde resultavam melodias que tanto faziam pensar como embalar os sonhos de mudança. Como sabia pouco de composição, dois ou três tons (?), diz-se, a música que fazia resultava de um esforço de beleza sobre a simplicidade que os seus conhecimentos permitiam. Não que com isso fosse reduzido ao básico na composição, mas sempre com o objectivo de criar um efeito especial num tema de três minutos que arrebatasse.
AS FOTOGRAFIAS existentes nesta Fotobiografia permitem acompanhar o cantor durante quase todos os momentos da sua vida. Nascido a 2 de Agosto de 1929, José Afonso dizia que tinha desses primeiros tempos de vida a ideia de uma luz difusa que recortava as pessoas que se debruçavam sobre ele e a mãe. Cedo os pais partem para Angola e o menino fica dois anos a cargo de duas tias até a família se reencontrar na ex-colónia. Os pais viajam ainda para Moçambique e Timor e a criança regressa ao convívio com as tias. Seguem-se os estudos em Belmonte e na universidade em Coimbra, sendo nesta última que tudo começará. Noitadas com uma guitarra e interpretação desse «folclore de elite» que era o fado típico da cidade e a gravação em disco. Os valores do Estado de então ainda permaneciam superiores aos do futuro. Casou, fez a tropa, mas acabou por entrar no coro de protesto contra o decreto 40 900, contra a autonomia associativa dos estudantes.
A campanha de Humberto Delgado leva-o definitivamente para a política e as digressões como cantor para o debate político. Quando o circuito da Margem Sul irrompe com força na sua vida de cantor, já José Afonso está comprometido ideologicamente. Canta ao lado de Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e Francisco Fanhais, começa a gravar os discos que o identificarão para sempre e a sofrer a forte perseguição da PIDE. A revista Mundo da Canção, através de uma votação dos seus leitores, elege-o o melhor intérprete de 1970 e é capa da revista Flama, onde afirma: «Não quer ser vedeta.»
A partir dessa época, José Afonso vai entrando na História de Portugal pela canção, pelo protesto e pela intervenção política à sua maneira e colhe até 1987 a satisfação de ver o país livre do salazarismo e do marcelismo. As diferenças dos tempos eram evidentes e podiam comprovar-se na liberdade com que interpretou em 1983 as canções censuradas no espectáculo onde participara no Coliseu a um mês de distância da Revolução do 25 de Abril.
José Afonso morre a 23 de Fevereiro de 1987, no Hospital de Setúbal, às três horas da madrugada, vítima de esclerose lateral amiotrófica. Antes de acabar o dia, um jornal da tarde fez na primeira página o seguinte título: «Só a morte silenciou Zeca Afonso.»
Ficha do livro
José Afonso – Fotobiografia
Irene Flunser Pimentel
Temas & Debates