Bill Murray, Filipe Melo e um cinema com gente feliz
O que é um filme de culto nos nossos dias? Nem talvez Filipe Melo, cinéfilo revivalista, realizador pontual, autor de BD e pianista de jazz, saiba responder, mas é ele que mensalmente programa com sucesso as Sessões de Culto do Nimas, em Lisboa. Para o músico, o importante nestas sessões de cinema é criar um ambiente de festa coletiva.
Dar a ver filmes que ora pela sua raridade ora pela sua aura de saudosismo possam dar prazer de ver numa sala de cinema com pessoas que também têm o mesmo carinho pelos filmes. Um rapaz da geração de 70 que na última quarta-feira apresentou uma sessão dupla de O Feitiço do Tempo (mais conhecido pelo título original, Groundhog Day), de Harold Ramis, um clássico de 1993 sobre o Dia da Marmota, um dia que nunca mais acaba...
O ambiente era de celebração cinéfila, aliás, como sempre acontece, a fazer lembrar muito as enchentes do MOTELx e com um público heterogéneo e muitas caras conhecidas (Pedro Mexia, João Tordo, Manuel João Vieira...), embora a tónica seja em jovens com T-shirts de filmes e bandas conhecidas, gente que não tem medo de proclamar o seu lado nerd.
São esses que cumprimentam Filipe Melo antes de a sessão começar e sorriem muito - está a passar em loop a música nonstop do filme: I"ve Got You Babe, de Sony & Cher. Aliás, não faltam sorrisos nos corredores do Nimas, quanto mais não seja porque estamos na véspera do verdadeiro Dia da Marmota, em que todos os dias 2 de fevereiro é anunciado por uma marmota se o inverno acaba mais cedo ou não, uma tradição de culto em alguns locais do Canadá e dos EUA.
Antes de o filme começar, a habitual apresentação bem-humorada de Melo, que faz sempre questão de oferecer ao público presentes depois de fazer uma série de perguntas. Um quiz show onde importa ter memória de cinema para ser o primeiro a descobrir a autoria da música de A Mulher Falcão aos primeiros acordes ou saber identificar o rosto de um ator de série B como Michael Ironside mal apareça a cara dele no ecrã. Nota-se que Melo se diverte imenso com tudo aquilo.
A cereja no topo do bolo vem quando antes de começar a sessão a surpresa é revelada: um vídeo com saudação personalizada de Danny Rubin, o autor desta história. Um mimo que deixa os fanáticos em êxtase.
"Há dois anos fiz uma sessão aqui no Nimas do The Room, de Tommy Wiseau, considerado por muitos o pior filme de sempre, e fiquei espantado por todo aquele fenómeno. O ambiente na sala foi muito especial. Dois anos depois, pediram-me da Leopardo Filmes para programar com carta-branca uma quarta-feira todos os meses.
O critério, muitas vezes, é sempre escolher um filme que me apeteceria voltar à sala para rever. E esta sala, o Nimas, foi muito especial na minha infância", conta o cicerone, que anuncia que a 22 de março já há filme garantido: Um Assassino pelas Costas/Duel, o mítico telefilme de 1971 de Steven Spielberg.
Um dos habitués destas sessões é Tiago R. Santos, escritor e argumentista, que nos explica porque marca sempre presença nestas noites: "Venho porque as sessões são a mais pura celebração do cinema. Sem tangas nem vaidades nem preconceitos nem arrogância, apenas uma sala cheia de raparigas e rapazes entusiasmados por rever filmes que marcaram um momento das suas vidas.
Nem sequer sou um tipo que entre na conversa das "energias", mas há mesmo um ambiente bonito por ali que até me ajuda a recordar porque é que sou argumentista - quando as coisas correm bem, há um diálogo que os filmes estabelecem com os espectadores e uma empatia que se torna contagiosa."
A atriz Helena Canhoto também só tem palavras de amor por este evento e no final da sessão recordava o impacto de rever a comédia romântica de Ramis: "É a prova de que se pode ter ao mesmo tempo um filme perfeito para se ver numa matiné de domingo e numa sessão de culto como esta."
Melo apenas tem um lamento: "Queria que depois ficássemos todos aqui a beber um copo, que a festa continuasse" - não é possível, o bar do Nimas fecha... Sobre os filmes anteriores, regozija-se de ter enchido sempre a sala. O primeiro foi The Room, com muitas colheres atiradas para o ecrã, seguindo-se El Topo, de Alejandro Jodorowsky, cineasta mexicano que só neste ano foi descoberto no circuito comercial nacional, e Gremlins - Pequeno Monstro, de Joe Dante, que teve a presença de Zach Galligan, o protagonista do filme - "o tempo de perguntas e respostas demorou cerca de uma hora e contou histórias incríveis", recorda Melo.
Em dezembro, foi a vez de Por Favor não Me Morda o Pescoço/The Fearless Vampire Killers, de Roman Polanski. "O que faz que queiramos todos ver ou rever estes filmes é olharmos para os cartazes e para as letras aqui no Nimas a anunciar o filme. É um ambiente muito especial e faço sempre questão de darmos folhas de sala", conta.
Tiago, engenheiro de 36 anos, veio ao Nimas para ver o filme pela primeira vez em grande ecrã e levar a namorada que nunca o tinha visto. Está ansioso e diz-se viciado no filme. Filipe Melo congratula-se e diz que é mesmo esse o público que quer nas sessões. Por coincidência, Daniel Oliveira, o jornalista, passa por acaso em frente ao Nimas e fica espantado por estar a ser exibido Groundhog Day: "Já escrevi nas minhas crónicas evocações deste Dia da Marmota. Agora não, mas antes a política portuguesa era como um interminável Dia da Marmota."
A verdade é que tudo pode acontecer nestas sessões. Será que poderemos ver um dia Música no Coração? "Porque não?! Agora que está tudo apaixonado pelo maravilhoso La La Land, lembro-me de que Do Fundo do Coração, do Coppola, é um grande filme", conta o programador. E o otimismo do cinéfilo começa a imaginar Nastassja Kinski a visitar o Nimas...