Biblioteca
Em Angra, discute-se a nova biblioteca. Andou anos em banho-maria, à espera das eleições mais convenientes, e quando os angrenses despertaram já tinham um colosso de aço, vidro e betão debruçado sobre a cidade.
Os velhos não tardaram a reagir: megalomania, traição à traça! Os funcionários da biblioteca velha aproveitaram: num sítio daqueles, vamos ter de subir uma rua! A oposição exultou: são uns canalhas, votem em nós!
Eu perguntava-me se o edifício não seria bonito, a marca de uma geração numa cidade que não se tem preocupado com elas. Mas não sei de arquitectura - e calei-me.
Entretanto, a crise empandeirou o empreiteiro e a obra esteve parada dois anos. Não ficava mal: assim como assim, Angra está cheia de grandes ruínas.
Mas, entretanto, refez-se o caderno de encargos, relançou-se o concurso e agora parece que é de vez. Os velhos andam furiosos: megalomania, traição à traça! Os funcionários engolem em seco: mas, caramba, vamos ter de subir uma rua! A oposição atira foguetes: votem em nós, votem em nós!
No outro dia estive lá com o Carlos. Ele pôs-se a fotografar. Fotografou fachadas, módulos, rasgões. Subiu andaimes. Encontrou perspectivas que talvez só um arquitecto saiba encontrar.
Estava fascinado. Não era uma pele a que a cidade estivesse habituada - não era uma linguagem que fizesse parte deste léxico. Mas existiria arquitectura sem perturbação? Sem que as pessoas se interrogassem?
À saída, encontrámos um dos velhos. Ouviu a palavra "contemporâneo" e meteu-se na conversa:
- Não lhe chamem contemporâneo! Isto é futurista. Futurista!
Só nessa altura percebi que vivia no passado, como todos os inimigos da arquitectura ao longo dos séculos.
O melhor é concluir a obra e fazer uma boa festa no dia da inauguração. Uma boa festa e reúnem-se logo as vontades todas.