BETTE DAVIS ENTRE O GÉNIO E O MAU GÉNIO
Quando, em 1977, Bette Davis se tornou na primeira mulher a receber o Prémio de Carreira do American Film Institute, mal chegou ao palco, disse: "Não sou uma canção!" Referia-se a Bette Davis Eyes, que pouco depois seria popularizada por Kim Carnes, a quem Davis haveria de convidar para cantar durante uma homenagem que lhe fizeram, antes da sua morte, em 1989.
Mas naquela noite, Davis achou que teria que refilar por alguma coisa, nem que fosse para manter a reputação de ser uma das mulheres mais tortas e uma das actrizes mais combativas da história de Hollywood. A comprová-lo está o epitáfio inscrito na sua sepultura: "She did it the hard way." O mesmo é dizer: "Subiu a pulso."
Não era bonita nem sexy e foi a primeira estrela sem tais atributos a impôr-se em Hollywood. Talvez por isso, durou mais do que quase todas as outras. Nunca se importou de interpretar papéis antipáticos, negativos ou abertamente pérfidos, numa época em que as actrizes fugiam deles como o diabo da cruz. Foi pioneira entre os actores americanos a enfrentar os grandes estúdios por melhores desempenhos em bons filmes, mais dinheiro e independência. Conquistou o público, impôs um estilo e criou uma imagem com os olhos grandes, a atitude afirmativa, o sarcasmo cortante, algumas caretas, o discurso sincopado e um cigarro sempre na mão. Virou ícone, ganhou fumos de mito. Duplamente oscarizada, premiada em Cannes e Veneza, aclamada em todo o mundo, foi reconhecida como uma actriz de génio com um mau génio lendário. "Na minha profissão, só nos tornamos estrelas quando ficamos com reputação de monstros", explicou. Nunca deixou que ninguém fizesse farinha com ela. Por isso, também se fartou de sofrer, e de fazer sofrer. Mas em vez de se queixar, na vida ou na tela, refilava sempre.
Faz hoje 100 anos que Bette Davis nasceu Ruth Elizabeth Davis, em Lowell, no Massachussets. Aos 18 anos, entusiasmou-se com uma peça de Ibsen e foi estudar teatro. Em 1929, estreou-se na Broadway e pouco depois foi "descoberta" pela Universal, mas assinou pelos irmãos Warner. Após vários maus filmes, deu-se a notar em Servidão Humana (1934), de John Cromwell, "emprestada" à RKO, num memorável papel de pérfida, e um ano depois ganhou o primeiro de dois Óscares de Melhor Actriz (foi nomeada dez vezes) por Mulher Perigosa, de Alfred E. Green, a fazer de actriz alcoólica. Como achava que lhe davam muitos papéis medíocres que lhe estavam a dar cabo da carreira, bateu o pé aos patrões. Perdeu em tribunal, mas conseguiu mais regalias e melhores filmes, porque já era uma vedeta lucrativa. Vieram então os seus anos de ouro, em que se tornaria a estrela mais rentável da Warner, ganharia o segundo Óscar em Jezebel, a Insubmissa (1938), de William Wyler, e faria filmes como Vitória Negra (1939), A Raposa (1941) ou A Estranha Passageira (1942).
Já a trabalhar como freelance, abriu os anos 50 em grande, com Eva, de Joseph L. Man- kiewicz. A sua carreira entrou depois em declínio, mas Que Teria Acontecido à Baby Jane? (1963), de Robert Aldrich, deu-lhe um segundo fôlego e aumentou o seu culto, tal como Com a Maldade na Alma (1965), de novo com Aldrich. Fez teatro, TV, ganhou um Emmy em 1979 e teve pequenos papéis em vários filmes, até voltar a brilhar em As Baleias de Agosto (1987), de Lindsay Anderson. Morreu de cancro, em Paris, em 1989. Foi casada quatro vezes e teve três filhos. Foi a primeira mulher a presidir, embora só por três meses, em 1941, à Academia de Hollywood. Demitiu-se após vários conflitos e choques com outros membros da direcção. Torta, sempre.|