Betão, não.

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Um dia, a casa veio abaixo. A causa remota foi um terramoto, ou melhor vários, ocorridos nos anos de 553, 557 e de 558 (o pior de todos), mas o motivo próximo para a derrocada foi um defeito estrutural, o excessivo peso que a cúpula exercia sobre as colunas laterais, vergadas pela carga de um dos mais majestosos tectos que a Humanidade alguma vez concebeu. Sem pestanejar, o imperador ordenou que a igreja fosse reerguida, desta feita com materiais mais leves e novas linhas arquitectónicas, capazes de suportarem a colossal basílica de Istambul. No dia 23 de Dezembro do ano 562, o templo seria reinaugurado com enorme pompa, tendo a História registado a proclamação orgulhosa de Justiniano: "Salomão, superei-te!".

Disse-se que a reconstrução de Santa Sofia fora abençoada por um anjo que, qual fiscal de obra, vigiou pari passu os trabalhos dos operários. Também se jurou que o sucesso desse prodígio, a um tempo arquitectónico e construtivo, se deveu ao facto de nele ter sido utilizada madeira vinda da própria Arca de Noé, garantindo outros que cada tijolo tinha inscrito o dito de Salmos 46: "Deus está no meio dela, não pode vacilar". Se tudo isto são lendas que envolveram a edificação de uma igreja já de si lendária, como nos conta Bettany Hughes no apaixonante livro Istanbul. A Tale of Three Cities (Weidenfeld & Nicolson, 2017), há quem sustente que o êxito da reconstrução de Santa Sofia se deveu a uma razão mais prosaica e mais concreta, literalmente concreta, o uso de opus caementicium, o cimento que os romanos utilizaram em muitas dos seus edifícios, com destaque para o Panteão de Roma, e que possuía uma resistência e uma porosidade excepcionais, dadas pela pozolana, a cinza de origem vulcânica usada no Mediterrâneo já 500 anos antes de Cristo.

As fontes mais credíveis desmentem, no entanto, que em Santa Sofia tenha sido usada a pozolana, e dela não há referência no estudo clássico The Church of Sancta Sophia Constantinople. A study of byzantine building, de W. R. Lethaby e Harold Swainson, publicado em 1894 e reeditado há pouco. Também o filósofo Anselm Jappe, no seu devastador ensaio sobre o betão, afirma que, com a queda do Império do Ocidente, o caementum deixou pura e simplesmente de ser utilizado, pelo que igrejas como Santa Sofia, ou Santa Maria dei Fiore, em Florença, ou a Basílica de São Pedro, em Roma, foram construídas em tijolo e pedra, sem recurso à extraordinária descoberta dos romanos, que, ao misturarem a argamassa com o granulado vulcânico obtido em Pozzuoli, tinham conseguido obter um material de invulgar consistência e durabilidade, alcançando aquilo que Jappe designa por uma verdadeira "pedra artificial".

O ensaio de Anselm Jappe foi publicado entre nós, há um par de meses, pela magnífica chancela da Antígona (Betão. Arma de Construção Maciça do Capitalismo, Março de 2022) e é uma extraordinária digressão pelos muitos males do cimento armado, o qual, esclareça-se, nada tem a ver com o velho e bondoso caementum dos construtores romanos. Aquilo que motivou um pensador como Jappe a escrever sobre o betão foi, segundo o próprio, a derrocada da Ponte Morandi, em Génova, no Ferragosto de 2018, tragédia responsável por 43 mortes e prejuízos materiais de valor incalculável. O colapso ficou a dever-se à corrosão dos elementos estruturais da ponte, inaugurada em 1967 e desde então flagelada pela passagem contínua de tráfego pesado. A causa da catástrofe foi uma e só uma, o facto de a ponte ser feita em betão armado, um material bem menos resistente e perene do que julgamos.

O "betão", em sentido amplo, remonta ao final do Neolítico, quando no Médio Oriente se começou a utilizar terra argilosa e, depois, cal para aumentar a consistência das massas usadas na construção. Com o advento da química industrial, o francês Louis Vicat criou em 1818 o primeiro cimento "artificial" e coube a Joseph-Louis Cambot inventar, em meados do século XIX, aquilo a que chamou "ferrocimento", ou seja, o que hoje conhecemos por cimento armado, técnica desenvolvida pelo jardineiro Joseph Monier, que a usou no fabrico de vasos para plantas, reservatórios de água, ornamentos de jardim. Um engenheiro alemão comprou a patente de Monier e levou-a ao extremo e a Alemanha afirmou-se como um potentado do betão; entre tantos outros, o edifício do Reichstag de Berlim, edificado entre 1884 e 1894, foi integralmente feito em cimento armado.

No início, porém, este só era usado para realizar uma parte das construções, nomeadamente os alicerces, e muitos desconfiavam da nova maravilha, dizendo os seus críticos que ela não garantia a plena estabilidade dos edifícios. Até ao final da 2.ª Guerra, o seu uso não se encontrava generalizado, longe disso, e mesmo arranha-céus como o Empire State Building não recorriam ao betão armado.

As dramáticas necessidades de habitação numa Europa devastada, o lançamento de amplos programas de infra-estruturas, entre outros factores (v.g., a técnica do "betão pré-esforçado", desenvolvida em 1928 por Eugène Freyssinet), levaram ao generalizado betão, que até aí dominava sobretudo as grandes obras públicas, como a barragem Hoover, nos EUA, que, com os seus 3,3 milhões de metros cúbicos de cimento, logo se tornou a maior estrutura de betão armado do mundo, título hoje largamente superado por outros colossos, com destaque para a Barragem das Três Gargantas, na China, concluída em 2012, a qual devorou 27 milhões de metros cúbicos de cimento. Caso para dizer: é obra.

Se as décadas de 50 e 60 são hoje recordadas - e com justiça - como um tempo único de crescimento económico e de bem-estar, elas deram também início aos gigantescos bairros de habitação social e a milhares de edifícios erguidos segundo o novo estilo "brutalista". Desde então, o betão não parou de crescer e, de 1950 a 2019, a produção mundial de cimento passou de 200 milhões de toneladas ao ano para 4,4 mil milhões, ou seja, e como refere Anselm Jappe, multiplicou por 22 no espaço de 70 anos, uma taxa de crescimento três vezes mais rápida do que o aço. A China, como sempre, está na vanguarda da desgraça e, segundo uma estimativa célebre de Vaclav Smil, desde 2003 o país consome, em cada três anos, mais betão do que os Estados Unidos durante todo o século XX. Não admira, pois, que Pequim, que se deleita com estes recordes imbecis, tenha, a saber: a maior construção em betão armado do mundo (a já citada Barragem das Três Gargantas); a ponte marítima mais comprida do mundo, 55 quilómetros a ligar Hong Kong a Macau, um milhão de metros cúbicos de betão; o maior aeroporto do mundo, o de Pequim-Daxing, inaugurado em 2019, com traço da aclamada arquitecta Zaha Hadid, a quem ninguém perguntou o que pensava do respeito pelos Direitos Humanos naquelas paragens, onde assinou diversas obras icónicas - e faraónicas.

Um artigo saído em 2019 no Guardian, chamava ao betão "o material mais destrutivo na Terra" (Jonathan Watts, Concrete: The Most Destructive Material on Earth, The Guardian, 25/2/2019) e, na sua esteira, Anselm Jappe elenca os muitos males do cimento armado. Desde logo, ele é extremamente nocivo para a saúde humana, com as poeiras de sílica cristalina, presentes na areia, a gerarem milhões de vítimas de silicose, uma doença respiratória incurável, entre outras patologias, como o cancro do pulmão. Não surpreende que o maior e o mais grave número de casos de silicose esteja concentrado na China, entre os mineiros e, sobretudo, entre os operários-escravos que trabalham nos estaleiros que procedem à trituração, brocagem, serração ou ensaibramento.

O betão é também um dos piores inimigos do ambiente, ponto a que nem sempre se dá o devido relevo, concentrados que estamos nas misérias dos combustíveis fósseis. A seguir à água, o betão é o material mais usado na Terra e, se a indústria do cimento fosse um país, seria o terceiro maior emissor de CO2 do mundo, com 2,8 mil milhões de toneladas por ano, logo atrás da China e dos Estados Unidos. Prossigamos a estatística, aterradora: o betão é responsável por entre quatro a oito por cento das emissões de CO2, com cada tonelada de betão a gerar uma tonelada de dióxido de carbono (só o petróleo, o carvão e o gás conseguem fazer pior); e a massa de betão ultrapassa já, muito provavelmente, a massa de carbono de todas as árvores e arbustos da Terra. Além disso, o betão é um voraz devorador de energia e de água, abocanhando cerca de 10% da água disponível no mundo e em 2050, segundo a revista Nature, 75% desse consumo terá lugar em regiões do planeta com escassos recursos hídricos. Nas grandes cidades, os edifícios de betão retêm o calor do Sol e são particularmente expostos aos extremos climáticos. Foi pena que tivessem sido necessárias vagas de calor inauditas, e a pior seca da Europa em 500 anos, para que muitos tenham finalmente despertado para uma realidade que até agora teimavam em negar, ou minimizar.

De facto, é bem problemática esta questão do betão. Por um lado, ela não tem merecido o devido destaque na imprensa ou junto da opinião pública, para não falar de decisores políticos que continuam alheados do fogo que arde em seu redor (não se admirem no dia em que começarem a ser apeados do poder por "populistas climáticos", por falsos profetas da desgraça ou por vendedores de soluções milagrosas contra o aquecimento global). Por outro lado, enquanto no domínio dos combustíveis fósseis se investe e se discutem alternativas, nada de comparável existe para substituir o betão armado. As economias estão de tal formas ancoradas no betão que um dos indicadores mais usados para avaliar o desempenho da actividade produtiva é o número dos sacos de cimento vendidos, como se fosse imperioso, para que um país cresça, que se construa sempre mais e mais, até já não sobrar nada de terra livre e sadia. Fala-se, e com razão, numa imparável cimentificação do solo: em Itália, a superfície betonizada aumenta todos os anos, em média, 52 quilómetros quadrados, ou seja, dois metros quadrados por segundo. E o betão é um poderoso factor de esterilização dos solos, ao sepultar vastas áreas de terreno fértil (veja-se o que ocorreu nas "terras saloias" da periferia de Lisboa), ao obstruir cursos de água, ao sufocar habitats preciosos. As inundações catastróficas do Katrina, em Nova Orleães, e do Harvey, em Houston, deveram-se à impermeabilização dos solos e à obstrução dos cursos de água. Num mundo que irá viver em alternância entre vagas de calor extremo e inundações torrenciais, seria bom que pensássemos no mal, no tremendo mal, que o betão nos tem feito. Que pensássemos nas areias, uma indústria mafiosa e pantanosa à escala planetária: as ilhas artificiais do Dubai são feitas com areia vinda da Austrália; o maior lago da China, o Lago Poyang, é também a maior mina de areia do mundo, de onde anualmente se extrai mais areia do que a das três maiores minas dos EUA; Singapura importa areia da Indonésia e da Indochina; a Índia é dominada pela "máfia das areias"; a Camorra italiana prosperou à conta das areias e por toda a parte é notória e escandalosa a associação entre betão e corrupção. No momento em que escrevo, chegam notícias de que a China abriu investigações por corrupção aos quatro líderes das maiores construtoras estatais, no meio de sucessivas bolhas imobiliárias, a última das quais afectou a empresa Evergrande e outras 12 companhias, deixando vazias 100 milhões de casas, que dariam para alojar 260 milhões de pessoas.

Como se não bastasse, o betão tem um tempo de vida curtíssimo, um máximo de 50 anos, a partir do qual exige manutenção constante, pelo que só na aparência é um material mais barato e eficaz. Se exceptuarmos as matérias plásticas e outros materiais derivados do petróleo usados em segunda obra, o betão tem a duração de vida mais curta de todos os materiais de construção. E se fizermos as contas a este desgaste tão rápido e aos custos de manutenção, não é difícil concluir que o betão, até do ponto de vista económico, é um péssimo e enganador negócio.

O mais grave de tudo é que o betão é um inimigo silencioso, de que pouco ou nada se fala. Estamos despertos, e bem, para o lixo de plástico, para as pilhas eléctricas e para os resíduos nucleares, mas esquecemo-nos dos colossais resíduos betuminosos: por ano, a China produz dois mil milhões de toneladas de resíduos de construção, dos quais uma quarta parte são resíduos de betão, de que só uma ínfima parcela é tratada ou reutilizada. O Brasil só recicla um por cento do betão que produz, a China ou a Grécia reciclam 10 por cento, tudo o resto fica perdido na natureza, com terríveis efeitos ambientais e sobre a saúde humana.

É também a pulsão do betão que aumenta a tendência para a construção desmesurada e o caos urbanístico que flagela a paisagem e destrói a qualidade de vida. Portugal, país-prodígio, terra de maravilha e nonsense, comete a proeza de ter uma fábrica de cimento num dos seus mais belos e frágeis parques naturais, a Arrábida, e os responsáveis daquela indústria dizem-se agora apostados em reduzir a sua pegada carbónica - os 86 milhões que prometem investir para o efeito são, claro está, um hábil e descarado estratagema para garantir ad eternum a sua presença ali, em plena paisagem protegida. "Mudar de instalações não está nos planos da Secil", diz o CEO da empresa, com transparente clareza. Também com clareza, o CEO da Cimpor reconhece que esta, actualmente, só produz uma quantidade ínfima de cimento descarbonatado: um por cento. Repete-se: um por cento. E a promessa feita é de, com investimento e esforço, "escalar para 3%" (isto quando se afirma que "100% do betão é reciclável": então os restantes 97%? É a este ritmo que querem chegar a 2030 - daqui a oito anos! - a metade das actuais emissões de carbono?).

É óbvio e evidente que, à semelhança do que sucede com o petróleo e o gás, não poderemos abandonar o betão de um dia para o outro. Mas é imprescindível começar a pensar nisso, no quadro de uma alteração dos nossos comportamentos-padrões de consumo que, a bem ou mal, irá fatalmente ocorrer. A direita chama-lhe "austeridade", a esquerda fala em "decrescimento" e, por muito que custe, ele será inevitável; e ainda esta semana, Macron, e bem, alertou os franceses para "o fim da abundância". A opção que se coloca, na verdade, é só esta: ou mudamos já de vida, de uma forma rápida, mas gradual, pensada, sustentada, articulada, sobretudo com uma justa repartição dos encargos e dos sacrifícios, ou essa mudança far-se-á à bruta, imposta pelas intempéries da natureza, pela escassez dos recursos, ou seja, de modo atrabiliário, colérico, com violência e revoluções, com guerras e migrações em massa, com desigualdades abissais entre os muito ricos e os muitos pobres.

Aqui ao lado, no espaço de poucos anos, saíram dois livros marcantes, La España vacía, de Sergio del Molino, sobre a desertificação do interior (ed. Turner, 2016), e, já este ano, España fea, de Andrés Rubio, cujo subtítulo diz tudo: "El caos urbano, el mayor fracasso de la democracia" (ed. Debate, 2022). São duas faces da mesma moeda: enquanto o interior se despovoa, o litoral enche-se de gigantescos blocos de apartamentos, de colossais empreendimentos turísticos, de obras públicas de nulo gosto e da mais duvidosa utilidade. Tudo em betão, claro.

Também por cá, prossegue alegremente a febre da construção em massa, quando deveríamos apostar na reabilitação do muito, imenso, parque imobiliário degradado. Percorra-se Lisboa, sobretudo a sua zona oriental, veja-se a quantidade infinda de armazéns e fábricas ao abandono, terrenos vazios convertidos em lixeiras, espaços que bem poderiam ser reaproveitados para habitação jovem ou outras finalidades úteis. Era tempo, era mais do que tempo, de canalizar os dinheiros do PRR para fazer um cadastro predial à séria, rústico e urbano, pois, por mais estranho que pareça, Portugal não se conhece, sendo verdadeira terra incognita: nem o Estado, nem os particulares sabem que terrenos têm, com 20% do país ocupado por terras incultas, boa parte delas sem dono conhecido. Enquanto isso, 74% da população vive apinhada em apenas 2,4% do território, completamente betonizado. É também estranho que sejam os países pobres do sul da Europa (Portugal, Espanha, Itália, Grécia) a terem a maior parcela de proprietários, em detrimento do arrendamento - em Portugal, 73% de proprietários contra 27% de arrendatários. Como é estranho, estranhíssimo, que Portugal tenha um stock de habitação social residual (2,5%), dos mais baixos da Europa (na Holanda é 35%). Sinal de que existem vastos e poderosos interesses especulativos para que se construa sofregamente, mais e sempre mais, e que se construa para aquisição de casa própria. Não admira, assim, que os gastos dos portugueses com habitação tenham registado, na última década, a terceira maior subida da União Europeia.

Além de um cadastro da propriedade, era imprescindível realizar-se um levantamento completo dos imóveis nas mãos do Estado e das autarquias, das autarquias e outras entidades, para proceder à sua recuperação sistemática para suprir as carências habitacionais dos mais jovens, obrigados a competir com estrangeiros abastados a quem, pasme-se, continuam a ser dados privilégios fiscais, que talvez se justificassem em tempos de troika e de crise, mas que não fazem o menor sentido quando o mercado imobiliário se encontra ao rubro.

De igual modo, seria essencial, imprescindível, que existisse uma avaliação independente e centralizada dos custos, materiais e imateriais, que temos tido com este frenesi do betão. Para cada obra pública, feita pelo Estado, regiões e autarquias, importaria saber qual o seu orçamento inicial, qual o seu custo final e qual a real utilidade que teve e tem. Numa altura em que se comemoram os 50 anos do 25 de Abril, é tempo de, sem complexos nem preconceitos, fazermos uma avaliação do betão. A conclusão final será provavelmente esta: se foi a ditadura que inaugurou o caos urbanístico, a democracia nada fez para o travar e, pelo contrário, amplificou-o de forma grotesca, arrasadora, e, pior ainda, irreversível. Nas celebrações da Revolução, há uma mancha chamada betão.

Historiador.
Escreve de acordo com a antiga ortografia

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