A qualidade de vida de Canijo
Dia grande ontem do cinema português nesta Berlinale que já é um sucesso de bilhetes vendidos. O díptico Mal Viver e Viver Mal, de João Canijo foram mostrados finalmente. O primeiro na sessão de gala e o segundo num visionamento de imprensa da seleção Encontros e onde, imagine-se, se ouviram aplausos no final. Juntos são e devem ser entendidos como um só filme, é assim que faz sentido olhar para este projeto.
Tudo se passa num hotel de Ofir. Em Viver Mal, acompanhamos os hóspedes e a sua infelicidade e, em Mal Viver, a família que gere o hotel, em especial mãe e filha em conflito latente. Para quem nunca tenha entrado no cinema de Canijo, há talvez um efeito de absorção mais forte de um realismo cruel de relações humanas. Um sufoco que desta vez está iluminado pela luz de Leonor Teles. Ao mesmo tempo, é filme(s) de atores: Anabela Moreira é gigante, Madalena Almeida uma revelação, Leonor Silveira melhor do que nunca e Beatriz Batarda diferente de tudo o que dela se viu.
DestaquedestaqueTudo se passa num hotel de Ofir. Em Viver Mal, acompanhamos os hóspedes e a sua infelicidade e, em Mal Viver, a família que gere o hotel, em especial mãe e filha em conflito latente
Em Viver Mal, descobrimos mais subtilezas, parece entrar um humor mais sofisticado mas há sempre um mal estar português que flui bem na adaptação das peças de Stringberg que cada quarto e seus ocupantes sugerem. A agonia de Canijo sofistica-se num conto sobre a vida dos outros onde vamos ouvindo e espreitando a miséria humana como mirones acidentais. Tudo, em todo o lado, ao mesmo tempo. Sempre sem música, num silêncio ruidoso tremendo.
A piada faz-se sozinha: John Malkovich e o realizador de O Capitão, Robert Schwentke, fazem um olhar supostamente anacrónico, supostamente "modernaço" sobre Séneca durante o seu período de conselheiro de Nero na antiga Roma. Carregado de excessos estilísticos, cromáticos e de slow-motions doidivanas, Seneca- On the Creation of Earthquakes parece ser sobretudo um divertimento chique entre adultos.
Mais um tiro em falso da Berlinale Speciale, a secção de antestreias do festival, aquela onde parecem ser convidados filmes falhados mas com nomes conhecidos para o tapete vermelho. Seneca é um desses casos.
De filosofia tem muito pouco: Malkovich como Seneca é apenas uma demonstração das virtudes técnicas do ator de Chiado. Grita muito, pronuncia muito as palavras e tenta não ser erudito: é um filósofo cruel, alguém aflito para controlar os ímpetos sanguinários do seu "patrão", Nero, mas, ao mesmo tempo, instalado na sua burguesia onde é figura de monta da sociedade, seja como conselheiro de Estado, seja como encenador de peças de teatro onde se sacrificam crianças negras.
Robert Schwentke acredita no poder do monólogo e dá a Malkovich todo o peso da palavra, não obstante a diarreia visual. E acredita nas indiretas do anacronismo: Nero é apelidado de "sr. Presidente" e pensamos numa versão teen de Donald Trump. Sim, o populismo é para aqui chamado.
Mesmo com toda a agitação, apetece bradar aos céus por toda esta parafernália ser tão pouco estimulante, precisamente como um divertimento burguês, por muito fãs que sejamos do carisma de Malkovich. Depois, como é tendência destes tempos, há muito sangue, muita violência. Serve para alguma coisa? Manda o bom senso acreditar que todo este banho de sangue é apenas pateta ou tonto. Não fica bem, tal como o irritante humor snob que serve ainda para menos. Seneca é somente um exercício plástico, feito para uma vaidade artística que era escusada.
Outra das deceções da Berlinale era um dos títulos mais esperados fora-de-competição: Golda, de Guy Nativv, recriação dos acontecimentos que tiveram na base da guerra Yom Kippur, em Israel, através das intervenções de Golda Meir, a primeira-ministra israelita que durante a operação militar fazia tratamentos a um cancro que a viria a vitimar pouco depois.
Helen Mirren é a protagonista de um filme já adquirido para Portugal e que peca por um academismo ultrapassado, por muito que seja uma detalhada investigação da forma como esta mulher idosa conseguiu ganhar o título de Dama de Ferro numa processo de decisões militares que mudaram a face da guerra naquele território depois da ofensiva sírio-egipícia. Nativv, cineasta israelita radicado nos EUA, farta-se de filmar salas de reunião, cinzeiros, personagens a fumar em catadupa e mapas com posições militares. Na prática, só não é um filme de guerra porque a sua escala opta por não ter imagens de combate: apenas vemos imagens de arquivo - nada contra, mas esse efeito joga contra o esforço da enorme Helen Mirren , algures perdida na maquilhagem e no fato que a engorda. No final das contas, parece um boneco.
Golda tenta entrar na cabeça da mulher mas fica só pela estadista. E, para piorar, tem truques baixos quando manipula sentimentos - não há pudor quando vemos a suas lágrimas quando chora o filho de uma das suas assistentes. Na sessão oficial aqui no Palast não se sentiu euforia na receção, apenas aplausos educados.
dnot@dn.pt