Benim. O porto do não-retorno
Antes não era segura uma visita ao Benim. Em 2006, realizaram-se eleições presidenciais consideradas livres e justas. O êxito do sistema multipartidário foi elogiado internacionalmente. O país passou a ser considerado como um modelo de democracia em África. Cotonu é a sede do Governo e a maior cidade, mas a capital constitucional é Porto Novo. A altitude do Benim é quase a mesma em todo o país, e a maior parte da população vive nas planícies costeiras do sul, onde se localizam aquelas cidades. O norte consiste principalmente de savana e de terras altas semiáridas. Geograficamente, é um país magro e comprido, tal como Portugal. Eu ia com o interesse especial em pôr os pés em Uidá, onde havia o chamado "Porto do não-retorno" e os escravos eram enviados para as Américas, há trezentos anos. Há um pórtico triunfal, com a inserção da arte escultórica, em tons de castanho sobre uma tonalidade pálida do restante monumento, que tem ainda outras obras de arte. Representa um símbolo de união e paz entre o Velho e o Novo Mundo. Uma placa diz que simboliza a última etapa da maior deportação jamais conhecida na humanidade. Olhei o horizonte com os pés firmes na terra. Dificilmente se sente todo o peso de milhões de africanos aprisionados e colocados em navios em condições insuportáveis. Era a última visão que os deportados viam de África, antes de serem embarcados, para nunca mais voltar. Para além daquela costa, não eram mais considerados homens, mas mercadoria. Alguns morreriam pelo caminho. Este sítio tem uma força espiritual imensa. É, também, um centro importante do vodu, a religião tradicional que, a 10 de janeiro, organiza durante uma semana uma festividade com procura internacional. Trata-se de uma procissão que vem pela rota dos escravos, numa estrada de 3 quilómetros que liga o centro de Uidá ao oceano Atlântico, onde está o famoso pórtico. É acompanhado de danças e de outras atividades, como o Festival Internacional de Cinema Franco-Africano. Não estive nesse período, mas em Uidá contaram-me os festejos em pormenor e tive acesso a muitas fotografias, ao mesmo tempo que, à mesa, tinha um guisado à base de vegetais e mandioca. Para beber, imagine-se, uma coca-cola, muito apreciada e consumida por ali. Eu não fiz questão de outra coisa, afinal o mundo é uma mescla desde os pobres escravos que dali partiram. Porém, o doce foi tradicional: um "kanyah", feito com arroz moído, amendoim e açúcar. Passei como jornalista. O dono da casa ficou na expetativa de uma reportagem. Não paguei - não é por acaso que os beninenses são considerados um dos povos mais hospitaleiros do mundo -, mas deixei um desenho do horizonte do oceano feito durante a contemplação. O simpático dono pregou-o numa das paredes. Se alguém lá for, talvez ainda o veja.
Jorge Mangorrinha, professor universitário e pós-doutorado em turismo, faz um ensaio de memória através de fragmentos de viagem realizadas por ar, mar e terra e por olhares, leituras e conversas, entre o sonho que se fez realidade e a realidade que se fez sonho. Viagens fascinantes que são descritas pelo único português que até à data colocou em palavras imaginativas o que sente por todos os países do mundo. Uma série para ler aqui, na edição digital do DN.