Bem improvável

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Coisa bem improvável, há uns anos jantei com Robert D. Putnam em Florença depois de uma conferência em que ambos fomos oradores, e em 2016 lembrei-me muito disso, não só pelo excelente repasto e companhia. É uma frase acagonada para começar a primeira crónica do ano, mas a verdade é que vem mesmo a propósito, e é verdade, desculpar-me-ão como eu desculpo estar a ser lido sob ressaca.

Putnam é um cientista político, professor de Harvard, que tem estudado vários temas, mas ficou conhecido pela aplicação do conceito de capital social ao tecido social norte-americano. Lembrei-me desse jantar por duas coisas aparentemente contraditórias. A primeira foi de o senhor ter contado que aplicava à sua carreira académica alguns dos ensinamentos do sogro, ou do pai, não me recordo, que tinham sido empreiteiros. Um bom académico tem de estar sempre a explorar dois ou três temas, dizia ele, como se fossem terrenos, e um deles vai fazê-lo famoso, que na boca de um académico norte-americano não se resume à riqueza da fama e das citações, tem um bom sinalagma na conta bancária, e bem, e os outros temas vão ser fracassos, e assim que cheiramos que um está a ter sucesso e o outro fracasso, devemos abandonar os fracos e concentrar toda a força intelectual e as equipas no que está a dar dinheiro, digo, frutos intelectuais. Talvez aplicando esta técnica Robert Putnam seja um dos mais famosos académicos, aconselhando presidentes, políticos, criando discípulos, vendendo livros.

Mas outra das lembranças recorrentes deste jantar durante o ano que passou tem que ver com Trump e a América: Putnam, desde 1995, vinha alertando para a ideia de uma progressiva individualização da sociedade norte-americana, tudo à volta da imagem muito forte de bowling alone, título de um artigo de 1995 e de um livro de 2000 baseado nos dados que demonstram um decréscimo das associações e dos torneios de bowling ao mesmo tempo que o número de praticantes individuais crescia exponencialmente. Putnam, baseado em análise de dados e qualitativa, referia o progressivo afastamento dos americanos das organizações, das coletividades, o fim da família, da participação cívica e política. Em 2015, publica Our Kids, em que olha para a progressiva diferença de classes nos EUA, e insurge-se contra tendências impercetíveis mas, na sua opinião, transformativas, como a passagem dos tempos livres dos miúdos de atividades gratuitas para atividades pagas - em Portugal não se passa o mesmo? Mas muita da sua investigação nos últimos anos revela resultados assustadores, e é notório que deixam o próprio desconfortável - que a diversidade étnica e cultural das comunidades gera menor confiança social, o que agrava a solidão, a desconfiança, o fosso. E estava quase tudo aqui para lermos 2016.

2016 foi Trump e brexit, e aquilo que surpreendeu em 2016 foi aquilo ter surpreendido em 2016. Trump e brexit não foram acasos nem milagres, não foi um tsunami, não foi uma vaca com três cabeças, não foi a Cova de Iria. Trump e brexit foi o que o povo votou e, já agora, o que o povo deixou de votar. E isso são as regras do jogo da democracia, mas podíamos todos ter percebido um pouco mais onde isto ia parar.

Voltando aos empreiteiros. Trump está a inaugurar um modo pato-bravo de fazer política, em que o risco faz parte do negócio, a palavra é funcionalizada aos resultados, as relações pessoais e institucionais se confundem, e para ganhar cem é preciso perder vários dez. Os limites mudam de lugar, para lá onde não eram comuns em política, rompendo barreiras do decoro, da decência, da lei. Sobretudo um modo de fazer política pato-bravo baseado num ultrapragmatismo em que todos podem ser aliados, todos podem ser inimigos, mas é melhor que todos sejam aliados. Uma política errática, torrencial, que ocupando o espaço baralha a reação racional, que antes de ser já o era, que não olha a meios, porque não há meios só há fins. Só recordar uma coisinha: Trump vai tomar posse como presidente dos Estados Unidos da América numa altura em que está provado que houve interferência de uma potência estrangeira na sua eleição, não é apenas que uma potência estrangeira gostava da sua eleição, ou que preferia a sua eleição, ou que deu umas dicas para a campanha não uses gravatas azuis tão claras que te fazem parecer menos líder - interferiu eletronicamente para alterar o resultado da eleição.

Que lição de tudo isto? Que não há lições? Talvez. Mas é melhor pensar que a melhor lição de Trump é que, ao ter aumentado para lá do expectável o âmbito do possível, aumentou esse âmbito para todos os lados, todas as direções e, portanto, também para aquelas que considerámos ontem utópicas, hoje esperançosamente possíveis.

A melhor série do ano foi o Black Mirror, uma visão distópica do futuro próximo, baseado na ideia negativa de que toda a tecnologia nos levará para um abismo em que nos avaliamos uns aos outros, em que nos isolamos mais e expulsamos os mais fracos, fundamental ver, discutir, analisar, pensar. Mas as fichas não devemos pô-las no Black Mirror, mas na esperança de um futuro melhor. E o futuro melhor está todo desenhado no podcast Anatomy of Next Utopia, onde se debatem inteligentemente as tendências de um futuro melhor, da inteligência artificial à energia nuclear (sim, obrigado), passando pela robótica (basta escrever no Google e ouvir e ler que é de graça). Sem preconceitos nem medo de sermos felizes. Porque o bem improvável não é menos possível do que o mal impensável, e sabe melhor. Bom ano.

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