Beija-flores no Instagram

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Vadiando no minguado ecrã em que o mundo é plano mas cheio de abismos, encontrei o sorriso de Paulo Bonino, 93 anos, antigo vendedor de jacarandás e locutor de muitas rádios, fotógrafo do vasto Espírito Santo, por terra e ar. A história de meio século da cidade portuária de Vitória foi captada por ele, lá do alto. Poucos lhe pedem meças na tão invocada "visão de helicóptero", mesmo se a mulher o proibiu de voar em tal engenhoca. "Já num teco-teco", conta Bonino, "ela nunca reclamou". Mergulho o torpor peripatético a pique pelos abismos, arredondo-me no desmesurado mundo que o sorriso de Bonino abarca. O que me prende ao nome e ao sorriso, em incerta prosa de gazeta, é uma legenda: "Paulo Bonino, fotógrafo de beija-flores."

Neste Março, pela mão de um antigo aluno, ele partilha 60 anos de paixão pelo beija-flor numa exposição no Instagram. Filho de italianos nascido em Santa Teresa, fotografou beija-flores em todo o mundo e, claro, no Espírito Santo que é o santuário brasileiro do pássaro dos movimentos mágicos. Não está sozinho. Há uns anos, José Carlos de Oliveira, um outro grande fotógrafo de beija-flores, expôs num palacete de Cachoeiro de Itapemirim. Curvemo-nos: foi lá que nasceu Rubem Braga, foi lá que o sabiá dos cronistas conheceu o sabor da fruta-pão assada com manteiga. José Carlos contou que decidiu procurar beija-flores ao ver as fotos de Bonino. Não sei se chegou à fala com o mestre. Sei que conheceu o grande naturalista Augusto Ruschi. E sei que Rubem Braga foi a Santa Teresa, onde nasceu Bonino, encontrar-se com Ruschi. No regresso, escreveu uma crónica intitulada "Passarinhos", referindo-se ao naturalista como "o primeiro sujeito no mundo que conseguiu criar beija-flores".

Percebe-se que o encontro foi um festim de erudição. Falou-se da confraria secreta de amigos do bicudo, a ave que não sobrevive em gaiolas, e de graúnas, de curiós e de outras fantasias emplumadas. Dou comigo a passarinhar a ideia de que estavam lá todos, em festiva celebração, testando a tese de Ruschi de que a carne de faisão tem um "sabor parecido com a do macuco". Se alguém teve de pôr ordem na mesa foi o cronista. Afinal a exposição de José Carlos só foi possível ao abrigo da Lei Rubem Braga, de incentivo a projectos culturais. E uma lei com nome de cronista, mesmo em terra de beija-flores, tem muito que se lhe diga.


Jornalista. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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