Bares e discotecas 20 meses sem trabalhar: "Vêm aí despejos e muitas falências"

Representante do setor e empresários apontam quebras brutais no negócio, insuficiência, atrasos e falhas dos apoios do Estado a uma atividade esquecida na gestão da pandemia. Com menos de três meses de portas abertas, há mais de 17 mil empregos diretos em risco.
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As perdas ultrapassam os 80%, mesmo descontando os apoios que vão chegando. Em dois anos de pandemia, bares e discotecas foram os primeiros a fechar (então, voluntariamente, achando que seria por 15 dias) e os últimos a reabrir: só lhes foi permitido regressar à atividade a 1 de outubro, e então ainda com restrições. Têm sido, com os empresários da área de eventos - desta vez, parece que para aceder a espetáculos culturais com lugar marcado basta apresentar certificado digital -, os enjeitados da gestão da crise pandémica, obrigados a manter portas fechadas durante 20 meses, acumulando prejuízos, dívidas e incumprimento de obrigações porque impedidos de trabalhar. Nem três meses passados sobre algum regresso à vida, o governo voltou a pôr-lhes trancas às portas. E nesta semana adiou o regresso mais uma semana, condicionado as entradas à apresentação de teste negativo e com interdição de beber fora de portas.

"Volta-se a fechar o que é mais testado e seguro", lamenta Ricardo Tavares, representante do grupo Fiéis, que já teve de fechar duas de cinco casas no Bairro Alto. "As quebras no setor estão acima de 80% e os apoios continuam a chegar tarde - o novo layoff ainda nem está disponível na plataforma", diz o também presidente da Associação de Bares, Discotecas e Animadores, que garante que muitos empresários não resistiram a dois anos de encerramento e a situação vai piorar. "As moratórias acabaram e agora as contas têm de voltar a ser pagas, acrescidas da prestação em atraso, e sem faturar nada. Uma renda de 3 mil passa a representar 4 ou 5 mil... É impossível aguentar. É uma questão de tempo. Lá para março/abril vão começar em força os despejos. E vêm aí muito mais falências."

A situação é piorada por medidas tomadas por quem, garante Ricardo Tavares, "só pode desconhecer como funciona este negócio". E exemplifica com a proibição de beber na rua num momento em que (desde janeiro de 2021) não se pode fumar dentro dos estabelecimentos. Por outro lado, "as maiores casas investiram em centros de testagem à porta, a um custo médio de 800 a mil euros por noite e por casa. Mesmo numa zona histórica, um bar não fatura nem metade".

Que o diga Victor Cordeiro, dono de um bar no Cais do Sodré e de um restaurante-bar na Graça - tinha um terceiro que encerrou definitivamente quando a covid entrou em força. Com alguma almofada disponível para responder às perdas e sem dívidas ou créditos pelos quais responder, foi conseguindo mantendo as contas em dia e reduziu os custos fixos ao mínimo, à espera do momento em que a normalidade regresse. Mas não lhe custou pouco. "Por alto, já enterrei mais de 100 mil euros", assegura o empresário, apontando a instabilidade e falta de coerência das decisões como principais dificuldades. "Não se consegue dar continuidade aos projetos, fidelizar clientes. E a falta de turistas também nos afeta muito." Mesmo nos Loucos de Lisboa, que apesar de tudo e com muito menos clientes pôde ir mantendo a funcionar como restaurante.

A esperança que trouxe a reabertura dos bares, em outubro, levou-o a fazer novo investimento para renovar a oferta e a contratar mais dois funcionários para o Bacchanal, no Cais do Sodré. Agora voltaram todos ao layoff - que Victor espera levantar a 50% no dia 14. Mas mesmo os apoios recebidos ou que espera que cheguem pouco ajudam. "Faturámos muito bem nos meses de outubro, novembro e até ao fecho em dezembro, que deitou por terra os planos para uma das melhores épocas, o fim de ano. E isso deu-nos um bocadinho de margem para aguentar mais este embate, porque os apoios vêm sempre tarde... A última tranche chegou com uns três ou quatro meses de atraso e o que recebi nestes dois anos não chega a representar um terço das perdas. Só é possível sobreviver tendo fundo de maneio e felizmente tenho negócios noutras áreas que me permitem fazer o que a maioria dos empresários de bares e discotecas não podem. Mas tanto tempo sem faturação deixou-me descapitalizado", admite. Minimizar custos e ir pagando os gastos é a solução para ir segurando as casas que acredita que só na primavera devem ter novo fôlego. "Se eu vivesse só disto, não tinha a mínima hipótese", conclui.

Ricardo Tavares confirma: "As promessas do governo só chegaram a alguns e os empresários foram-se endividando durante o primeiro ano de pandemia, deixando contas por pagar porque não tinham como responder às suas obrigações, nomeadamente fiscais, e quando os apoios finalmente chegaram a nós vinham condicionados a quem tinha os impostos pagos." Lembra que foi preciso uma greve de fome - promovida pelo movimento Sobreviver a Pão e Água, de que foi porta-voz - que o levou a ele e a outros oito representantes da restauração, bares e discotecas a acampar sete dias à porta da Assembleia para chamar a atenção dos governantes para um setor até então esquecido. Mas um ano depois, os problemas persistem: apesar dos "esforços do secretário de Estado da Economia, que tem feito o possível, tem-nos ouvido", os apoios são poucos, chegam tarde e com tetos. "As maiores empresas só recebem até determinada fasquia e não na proporção dos gastos. E ainda há que pagar IRC sobre o que se recebe para pagar as dívidas", sublinha.

Ao fim de 20 meses sem poder trabalhar, ou a ter de investir para ajustar o negócio à imagem de café ou pastelaria, a reabertura durou quase nada. "É uma palhaçada", desabafa Ricardo, que acusa o governo de ver o mundo através da televisão. "Quando diziam que estava tudo fechado em Inglaterra, não era assim. As atividades só fechavam por curtos períodos, na maioria do tempo podiam funcionar. Aqui, não. E agora, um mês depois de reabrirmos sem restrições, voltam a impedir-nos de trabalhar."

"Se as pandemias, segundo apontam os especialistas, se vão tornar mais comuns, o setor dos espetáculos será o primeiro a ser novamente afetado." A reflexão é feita por André Henriques, promotor e empresário na área dos eventos de entretenimento que há um par de semanas se viu forçado pelo crescimento de casos (e antecipando a decisão da DGS) a cancelar todos os preparativos - e a perder todo o investimento feito - para a festa de fim de ano marcada para o Coliseu de Lisboa, Resolution Revolution 2022. O valor das entradas já compradas foi devolvido com um simples acesso ao bilhete eletrónico. Ficou maior o buraco do lado da organização. "Neste momento já acumulamos quebras na ordem dos 75%, face a 2019, nos eventos", resume André Henriques. Mas prefere olhar para a frente.

Para o empresário (e também radialista), trabalhar numa área em que se promove a proximidade e o contacto físico por excelência implica ser "pragmático sobre o que vamos ser daqui a cinco anos", neste novo contexto de risco permanente. "Novas oportunidades de negócio e crescimento do digital" são caminhos que o animador tem prosseguido em alternativa às portas que se vão fechando - incluindo festas virtuais, com DJ sets de luxo. Mas esse tipo de soluções ainda encontra "em muitas empresas grande resistência; é uma espécie de solução de recurso, quando tem de crescer e dar passos seguros nos próximos anos de forma a criar experiências. Temos de criar ofertas que vão ao encontro de novos hábitos de consumo, perceber e aceitar que a web 3.0 e o digital são determinantes para o futuro do setor."

Segundo números do INE (retrato em 2018) publicados pela AHRESP no verão de 2020, havia 8100 empresas registadas na área da animação noturna, responsáveis diretamente por 17 553 postos de trabalho. Representavam então um volume de negócios de perto de 600 milhões de euros. O Sistema de Informação da Classificação Portuguesa de Atividades Económicas (SICAE) tem neste momento registo de pouco cerca de 6,2 mil empresas nas áreas de bares e estabelecimentos de bebidas sem espetáculo e com espaço de dança.

Os apoios previstos para bares e discotecas obrigados a fechar são calculados pela quebra de faturação entre o quarto trimestre de 2019 e o mesmo período de 2020. Quem registe perdas entre 25% e 50% pode receber até 27 500 euros (microempresas) ou até 67 500 euros (pequenas e médias). As que tiverem quebras de faturação maiores recebem um apoio adicional de 41250 euros (microempresas) a 101 250 (pequenas e médias). Os apoios duram seis meses, ficando as empresas apoiadas proibidas de despedir trabalhadores ou encerrar atividade até dois meses depois de esgotar o apoio.

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