Baptista da Silva: apanha-me se puderes

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Falar de Artur Baptista da Silva não é, ou não é apenas, falar de "um burlão português", ao contrário do que assevera a Wikipédia, sempre desinformada. Desde logo porque não há a mínima certeza de que Artur Baptista da Silva seja somente um burlão, como não é seguro que seja cidadão português, ou, já agora, que sequer exista, pese ter forma e aparência humanas.

Na verdade, e por muito que escavemos, que perscrutemos, que varramos a internet inteira, o que dela se extrai é tão-somente, e apenas, uma notita muito sucinta, constante do sítio wikisporting.com, que dá conta de um indivíduo barbado, pró-escanzelado, de nome Artur Raul Reis Baptista da Silva, nascido em Lisboa aos 4 do mês de Setembro do ano de 1951, e aí caracterizado como "economista, professor universitário, consultor bancário, gestor e empresário", portanto do intelecto operário, o qual, parece, terá exercido a presidência do conselho fiscal dos Leões entre os dias 25 de Junho de 1988 e 24 de Junho de 1989, ou seja, durante o mandato e a gerência sportinguistas de outra eminente figura, o infausto Jorge Gonçalves, a.k.a. "o Bigodes".

Para adensar o mistério, até o próprio do seu nome próprio - Artur Raul - faz lembrar um anagrama, quiçá mesmo um pentagrama, coisa portanto do demo, aqui encarnado num arremedo de ser humano de fala pausada e serena, de olhar baço, parado, muito robótico, muito cyborg, que em tudo nos faz lembrar um funcionário da CGD de província, o homem da Regisconta em versão de cera Mme. Tussaud, ou, pelo nariz adunco e fibroso, um papagaio de taberna, daqueles já entradotes, de pena rala, muito ordinários. A aparência, de réptil pré-histórico; e no rosto, talhado à faca, glacial, cadavérico, sobressaem uns lábios finíssimos, quase inexistentes, de cujas comissuras escorrem uns fiozitos do sangue ainda quente das suas vítimas.

Se o diabo está nos detalhes, como costuma dizer-se, terá sido um lapsus calami ínfimo, minúsculo, desses que não lembra ao demónio, que suscitou a atenção dos funcionários do Sindicato dos Economistas quando, nos idos anos 80, o artista Baptista aí pretendeu inscrever-se. No boletim de admissão, reproduzido pelo jornal Sol, de 28/12/2012, o candidato deu 1975 como ano da sua licenciatura (em Organização e Gestão de Empresas, no ISCTE, 14 valores), apimentando a coisa com um Administration Master Degree de Fontainebleau. Porém, no verso do documento, e vá-se lá saber porquê, colocou 1976 como data de formatura, o que terá feito erguer o sobrolho de António Coelho, dirigente do Sindicato: "Estranhámos porque ele apresentava datas diferentes nos documentos e só por isso fomos verificar." E foi quando foram verificar que verificaram que o seu diploma do curso era forjado, facto que levaria o ISCTE a apresentar queixa contra ele por falsificação e contrafacção de documentos, a par de uma outra queixa, esta do Sindicato dos Economistas, por usurpação de funções. Por onde passa, a marca do mafarrico: "No sindicato há um antes e depois de Baptista da Silva. Antes, bastava uma cópia do certificado de habilitações para a inscrição de sócio. A partir do caso dele, passámos a exigir que fosse autenticada em notário", disse a funcionária Elina Pereira ao semanário Sol, na já citada edição de 28/11/2012, na qual se dava conta também de que Baptista era investigado pelas autoridades desde os anos 80 e que havia registo de, pelo menos, 18 processos-crime contra ele.

Nada disso o impedira, como é evidente, de ter assumido, em 1988, a presidência do conselho fiscal leonino e de ter sido eleito, em 1990, para a comissão política do PS, quatro anos depois de ter apoiado, em 1986, a candidatura de Vítor Constâncio à liderança do partido. Entrevistado pelo programa Sexta às 9, da RTP, de 11/1/2013, o socialista Rui Cunha, já falecido, lembrou que Constâncio fizera toda a campanha para secretário-geral do PS num automóvel descapotável emprestado por Artur Baptista da Silva e que este, por pressão dos "históricos do Lumiar", acabaria integrado por Cunha em segundo ou terceiro lugar da lista da sua candidatura à FAUL, que perdeu para António Costa. Depois disso, referiu Rui Cunha, Artur Baptista "nunca apareceu e desapareceu de circulação", ausência que pode ter ficado a dever-se - quem sabe? - ao facto de ter sido condenado em 1993, por crime não especificado, e em 1995, por abuso de confiança fiscal, emissão de cheques sem cobertura, burla agravada e uso de documento falso (em 1996, enquanto cumpria pena, cometeu a proeza de praticar um crime na prisão, que, a bem da reinserção social, os Serviços Prisionais se escusariam a dizer qual foi: Sol, de 5/1/2013). Mais tarde, entre Outubro de 2010 e Novembro de 2011, Baptista voltaria a cumprir pena, desta feita pelo atropelamento mortal de uma mulher de 54 anos numa passadeira de Vila Nova de Santo André, arrastando a vítima por vários metros e deixando-a sem assistência (CM, de 27/12/2022; Sexta às 9 cit.). Anos depois, Artur defender-se-ia dizendo que ia a 35 km à hora, o que talvez fosse verdade, mas que deixava por esclarecer um outro atropelamento fatal, o de uma mulher de 67 anos noutra passadeira da mesmíssima avenida em Santo André, localidade que, depois disso, e muito compreensivelmente, deixou de frequentar. Por explicar ficou também o facto, esse mais grave ainda, de os magistrados do tribunal de execução de penas o terem libertado logo ao fim de um ano, metade da pena, alegando ser um "recluso diferenciado pela sua formação profissional", dado ser doutorado em Economia Social e professor da Lusófona, o que era manifestamente falso, uma mentira em que, aliás, sucessivos juízes de sucessivos tribunais acreditaram, sem qualquer prova documental, baseando-se tão-só nas palavras de um homem que sabiam ter sido condenado por diversas burlas e falsificações (cf. Sexta às 9 cit.).

Na viragem do século, a vida de Artur Raul parece ter-se processado, assim, entre entradas e saídas da prisão, no intervalo das quais ia assumindo cargos variados, valendo-se para o efeito das suas credenciais académicas, que ia enriquecendo com mestrados em "Louvains" e doutoramentos nos "States", da militância no PS e de um alegado passado antifascista, no qual dizia ter sido até acusado e condenado nos tribunais plenários do Estado Novo, coisa que ninguém comprovou. Esticando-se um bocadito, afirmava também ter sido deputado à Assembleia Constituinte e parlamentar nas I, II e III Legislaturas, isto além de ex-governante, bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, vice-presidente do Banco Fonsecas & Burnay e do Banco Comercial de Macau, docente e investigador. Na realidade, mais prosaica, nunca frequentou a universidade, dele não existem quaisquer registos nos arquivos académicos, sendo até bastante provável que não tenha sequer concluído o ensino secundário. Esteve no Liceu Camões longos anos, de 1961 a 1970, onde foi colega de Ricardo Sá Fernandes, que recorda a sua irreverência e capacidade de liderança, qualidades que o levaram a ser eleito chefe de turma, mas, na sua ficha no liceu, além da reprovação em dois anos, por dificuldades sérias nas Matemáticas, consta que em 1970 ficou com a matrícula anulada por falta de pagamento das propinas.

Ecce o homo que se fazia notar nos comícios e nas campanhas eleitorais do PS, onde esgravatava, furava, metia conversa com os dirigentes, pedia-lhes reuniões com insistência, ia fazendo das suas: de Helena Roseta, segundo a própria, conseguiu um encontro em que solicitou um espaço para uma associação de solidariedade social localizada no Porto, a Espaço T.

Entre 1997 e 2001 assumiria a direcção do Instituto Piaget de Santo André, graças à protecção de António Oliveira Cruz, o fundador e presidente desse Instituto em Portugal, que ainda hoje codirige o seu Centro Internacional de Investigação, Epistemologia e Reflexão Transdisciplinar (CIIERT), assim como o seu Departamento de Altos Estudos e Formação Avançada (DAEFA). Muito loquaz como poeta (verseja desde os 13 anos e, em 1988, começou a editar a sua obra, "relembrando Bartolomeu Dias e Fernando Pessoa, bem como o início das comemorações das Descobertas"), Oliveira Cruz mostrou-se indisponível, contudo, para falar com o Público sobre Baptista da Silva, o mesmo sucedendo com o Piaget de Santo André, contactado pela Lusa. O presidente da Junta de Santo André, Jaime Cáceres, recordaria, porém, que Artur "fazia questão que se soubesse que era uma figura proeminente do Partido Socialista" e dizia-se "da velha guarda do PS, elemento destacado do partido e antifascista". Lembrou Cáceres também que o ministro Jorge Coelho chegou a estar presente no lançamento da primeira pedra do Piaget, em terrenos que, no PDM, constavam como zona rural, pelo que, prossegue o autarca, "teve de haver grande pressão". Por ironia das ironias, Baptista da Silva iria buscar pessoal da prisão de Santa Cruz para as obras do Instituto, disse ao Público, de 28/12/2012, a jornalista Aliette Martins, directora do Litoral Alentejano, que o recordou como um "burlão romântico", acrescentando: "Quando o hotel ficou pronto, Oliveira Cruz colocou lá como directora a segunda mulher de Artur Baptista."

Após a passagem pelo litoral alentejano, há rasto dele como secretário-geral da Associação de Creches e Pequenos Estabelecimentos do Ensino Particular, cargo que desempenhou entre 2007 e 2009 (e vemo-lo, de facto, a prestar declarações nessa qualidade, falando da gripe A nas escolas: DN, de 2/8/2009). Pouco depois, em 2011, esteve na Universidade de Verão do PS, onde disse urbi et orbi ser assessor do Presidente Jorge Sampaio.

A seguir começou a lançar as malhas da sua aracnídea urdidura, sempre eficaz, sempre letal: enviou um e-mail ao presidente da Academia de Bacalhau de Lisboa, Mário Nunes, falando das "elogiosas referências" que "diversas personalidades" tinham feito àquela agremiação e ao seu "convívio social e fraterno" e manifestou interesse em participar nos jantares organizados pela tertúlia. Num desses ágapes, conheceria o presidente e fundador do International Club of Portugal, Manuel Ramalho, consultor de empresas (e membro da comissão de honra da candidatura de José Maria Ricciardi à presidência do Sporting), a quem se apresentou como especialista do Banco Mundial e da ONU, além, claro, de ex-deputado do PS e ex-secretário de Estado, em pasta não especificada. Mais tarde, num almoço no Grémio Literário, instituição da qual era sócio há mais de três décadas, Baptista da Silva sugeriu a Manuel Ramalho ser orador num dos debates promovidos pelo International Club, uma agremiação lisboeta que, na sua carta de princípios, se propõe, entre o mais, "ser um espaço onde cidadãos nacionais e estrangeiros possam interagir e estabelecer relações pessoais e profissionais, fomentando a integração e fortalecendo a rede social" (princípio I), "materializar e desenvolver o espírito cosmopolita e global das sociedades modernas" (princípio II) e "manter a análise crítica e construtiva assente no princípio do bem comum" (princípio V).

Entretanto, na Academia do Bacalhau, e como convém a um bom académico, Baptista propôs-se fazer uma apresentação do seu trabalho nas Nações Unidas, o qual, dizia, tinha sido premiado em Nova Iorque com o prestigioso Feelings Award da UNESCO. Falaria na Academia em duas ocasiões, pelo menos, uma das quais em Abril de 2012, e Mário Nunes, o presidente bacalhoeiro, sublinha que aquele confrade sempre teve "um comportamento educado, correcto e elegante".

Os e-mails revelados mostram o calibre do bicho: na primeira abordagem, tacteante, as credenciais académicas ("um grande amigo indicou-me o endereço de V. para lhe dar a conhecer o meu interesse em poder vir a ser aceite como membro da Academia do Bacalhau de Lisboa. sou professor universitário da UTL de Economia Social e senior fellow da Milton Wisconsin University"); depois, para reforçar a patranha, impedimentos de agenda cosmopolita ("por motivo de ausência, nos States, por imperativos profissionais, não me vai ser possível estar no almoço de 4 de junho"); a seguir, a recepção do prémio UNESCO, como se estivesse em Manhattan ("terei o maior prazer em oferecer um exemplar do meu trabalho que acaba de ser premiado com o Feelings Award da UNESCO e que recebi ontem, aqui, em Nova York"); a convocação da mulher, também ela grande académica, adereço de credibilidade ("levarei, como convidada, a minha mulher, Carmen Baptista da Silva, bióloga oceanográfica e investigadora"); por fim, a picada assassina: "Como no dia 14 serei orador na conferência do Banco Mundial, em Nova York. disponibilizo-me para quando e se V. entender útil e oportuno para dissertar para os compadres da ABL sob o tema adaptado a um auditório nacional" (cf. Sol, de 5/1/2023). Academia no papo, daí para o International Club.

Não contente, no dia 4 de Dezembro de 2012 proferiria uma conferência no Grémio Literário, perante uma plateia de "inúmeros notáveis", diria mais tarde Nicolau Santos, o qual sublinhou ainda, entalando-a, que uma jornalista do Expresso, que não identificou, tinha ido assistir com agrado à palestra, na qual o orador fora apresentado ("introduzido") pela presidente do American Club, Anne C. Taylor. O presidente do Grémio, Macedo e Cunha, recordaria o momento, com pontinha de ironia: "sala cheia", "conferência muito interessante", orador "muito aplaudido", uma "ovação extraordinária" e, no final, perguntas sobre perguntas da audiência distinta, as quais tiveram até de ser interrompidas por ser hora de jantar. O palestrante era da casa, sócio do Grémio desde 1981, em cuja ficha de inscrição pode ler-se, entre outros mimos, que tinha como preferências culturais "teatro e ballet" e, como hobbies predilectos, "ténis e investigação em management".

Pela mesma altura, ou um pouco antes, Artur Baptista da Silva falaria também no Espaço T., em intervenção sobre a "Felicidade". Existe até um belo registo vídeo desse momento e evento, no qual se vê o tratante à vontaducha, de mão no bolso, a confidenciar à plateia crédula que estivera hora e meia a conversar sobre o tema da felicidade com Edgar Morin, num café, e que, no final, o pensador francês lhe dissera, lapidarmente: "A felicidade é um sorriso na alma." Muitos aplausos.

O Bloco de Esquerda seria outra das suas vítimas. Usando o mesmo procedimento ardiloso que utilizara com a Academia do Bacalhau, Artur enviou para o Esquerda.Net, o blogue do Bloco, um e-mail muito camarada e falinhas mansas, oferecendo-se para assinar o manifesto "Somos solidários com o povo da Grécia", já subscrito, entre outros, por Mário Soares, Boaventura de Sousa Santos, Manuel Carvalho da Silva, Diana Andringa e José Manuel Pureza. As suas palavras, de antologia: "Estou interessado em subscrever, mas... não sou mediático!", avisou. "Sou apenas um investigador e prof. universitário de Economia Social. Se acharem que não estorvo (prometo que não serei incómodo nem pedirei autógrafos), estou disponível. Se não, ficarei de fora a apoiar, pois é indispensável indignarmo-nos e "vir para a rua gritar"." Talvez para expressar esta indignação pedira também uma audiência ao cardeal-patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, para "entregar um estudo", dizendo ser afilhado do seu antecessor, D. António Ribeiro. Imparável Artur, um baptista português.

O que se passou a seguir é de todos conhecido e, de tão triste, nem merece ser em excesso recordado: em 21 de Dezembro de 2012, e a convite de Nicolau Santos, Artur Baptista da Silva esteve presente no programa Expresso da Meia-Noite, da SIC, tendo o editor de economia do Expresso publicado, neste jornal, o fatídico artigo "O que diz Artur e o Governo não ouve", no qual terminava pedindo a Passos Coelho e a Vítor Gaspar que lessem a importante entrevista que, a 15 de Dezembro, o sábio Baptista dera ao mesmo semanário.

Quanto mais alto se sobe, maior é a queda, no dito confuciano, e, na verdade, aquela ida à televisão acabou por ser, mais do que o princípio de Peter, o fim do nosso Baptista. Ao verem-no altivo no écran, muito douto, muito bem-falante, muito convincente, alguns sportinguistas lembraram-se dele dos tempos de Alvalade, onde já então tinha a alcunha de "burlão encartado" (neste caso diplomado); depois, como um castelinho de cartas, verificou-se que o tal prémio Feelings, da UNESCO, nem sequer existia, que a universidade americana onde Baptista dizia ensinar, a portentosa Milton Wisconsin, fechara há mais de 28 anos (e por lhe ter sido retirada a acreditação), que a sua suposta tese de PhD era um plágio descarado de um artigo estrangeiro, descarregado da internet e traduzido com nova formatação mas muitos erros de ortografia. Até como burlão Baptista foi medíocre: o CV e os cartões de visita, que distribuía a torto e a direito, tinham logótipos desactualizados e indicavam instituições imaginárias, tão surreais como ele, nas quais se destacava um fantasmagórico "Observatório Económico e Social das Nações Unidas para a Europa do Sul" e uma equipa de economistas mandatada por Ban-Ki-moon para estudar "o risco geopolítico e social na Europa do Sul como resultado dos programas de ajustamento", a qual era presidida, obviamente, por Artur Raul, o Baptista.

Apanhado, reagiria em modo aldrabão clássico, ora teimando em que pertencia à ONU, mas como "colaborador voluntário", ora falando em "ataques mediáticos", em "chacina de carácter" e, claro, no sempiterno "matar o mensageiro", para o que chegou a aludir a um "regresso à antiguidade clássica", e ora dizendo, enfim, que era fácil chamarem-lhe burlão, a ele, pobre de Cristo, enquanto se deixavam na penumbra os altos figurões do burlonismo lusitano, os grandes devedores do BPN. Em todo o caso, enviaria à cautela um e-mail para a Academia do Bacalhau, e outro para o International Club, desvinculando-se para "evitar inconvenientes institucionais". Renunciou também a um cargo que pelos vistos tinha e ninguém sabia, o de membro da Comissão de Accionistas da SAD do Sporting (CM, de 2/1/2013).

O Grémio Literário anunciou um processo disciplinar, a Academia do Bacalhau e o International disseram estar a ponderar uma queixa à justiça, a PGR informou estar a "analisar o caso", mas nada mais se soube, é óbvio.

O caso seria noticiado no estrangeiro, pelo Le Monde e pela BBC Internacional, de 21/1/2013, até porque, em tempos de troika e de crise, a entrevista de Baptista ao Expresso chegara longe, muito longe, até ao Chicago Tribune, e fora apontada como exemplo de lucidez e de pensamento crítico. Pelos canais diplomáticos, as Necessidades enviaram perguntas para Nova Iorque e Genebra, a que estas responderam desconhecer por inteiro o Baptista e as suas instituições de opereta e, indo mais longe, afirmaram não estar ele autorizado a falar em nome da ONU e do Banco Mundial. Prometeram também inquéritos, processos, acções - nada se fez, Nicolau Santos confessou ter sido "embarretado", pediu desculpas, declinou demitir-se, o que em parte se compreende, pois muitos como ele confiaram no artista e, importa dizê-lo, também o Diário de Notícias embarcou na farândola, sendo obrigado a deitar para o lixo 100 mil exemplares de uma edição já impressa da Notícias Magazine com uma entrevista a Baptista, fotografado em poses de sábio ao cimo da Avenida. De resto, também a TVI lhe fez uma extensa e bombástica entrevista, prudentemente engavetada aos primeiros sinais do escândalo.

O problema - e um grande problema, mesmo - é que, ao contrário do que se julgou e fez crer, nem todos caíram naquela esparrela. Houve heróis nesta história, gente que não se deixou enganar, mesmo tendo menos experiência, recursos e meios do que um semanário de referência, um partido político poderoso ou diversas e distintas agremiações do Portugal almoçarista e sentado, o Portugal das charlas e das palestras, das trocas de cartões vistosos, das redes de networking (e cuja fragilidade e vacuidade aqui foram exuberantemente mostradas). Quando Artur ensaiou o seu ardil clássico com uma ONG, a associação Vida, a responsável por essa instituição, a jovem Ana Granja, desconfiou dos títulos opulentos no seu cartão de visita, foi consultar a internet, ligou para as Nações Unidas, fez, em suma, o trabalho de casa, básico e mínimo, e ao fim de poucos instantes desmascarou o farsante. De igual modo, na associação OIKOS correram-no ao fim de um mês, pois rapidamente concluíram que aquele que se dizia economista, e exigia ser tratado por "professor Artur", não tinha, afinal, conhecimentos mínimos de contabilidade e finanças.

Mesmo perante a monumental impostura, não faltou quem relativizasse, quem dissesse que ele era "um Robin Hood" de quem os injustiçados gostavam, pois conseguira enganar "o sistema" (leia-se: a troika austeritária); como houve quem afirmasse que ele "deu um bom espectáculo, ponto final" e que "poucos ficaram chocados" ("Mesmo descoberto como impostor, "observador da ONU" ainda desperta simpatias", Público, de 27/12/2012). Chamado a pronunciar-se, o pensador Boaventura de Sousa Santos, hoje metido em trabalhos, falaria da "destruição do Estado social" então em curso, justificaria o caso com a "polarização" e com o "clima de muita tensão" no país, quase culpando a troika pelo ocorrido e terminando com o argumento, só em parte verdadeiro, de que o incidente Baptista nunca poderia "pôr em causa a credibilidade de quem há muito apresenta um conjunto de argumentos coerentes para fundamentar as suas convicções" (Público, de 24/12/2012).

É facto que a direita rejubilou, acossada que então estava pelas manifestações e os protestos, como é facto que Baptista foi um inesperado presente de Natal ou maná dos céus para o governo de Passos Coelho, até porque, a seu pretexto, houve uma espécie de Christmas Truce num país muito crispado, um momento de descompressão e pilhéria, muita, imensa, tremenda, tantas foram as sátiras pelas redes fora, incluindo o "Baptista da Silva a olhar para coisas", então uma novidade no Tumblr, e, no Facebook, a página "Eu Trabalhei na ONU com Artur Baptista da Silva" ("Artur Baptista da Silva virou fenómeno de humor online", Sol, de 28/12/2012).

Contudo, esse súbito e momentâneo virar do jogo à direita em nada justificava que, à esquerda, tomassem o partido do Artur Raul, afirmando, por exemplo, que havia gente bem mais maligna do que ele mas que permanecia impune, como Passos Coelho, Dias Loureiro ou Miguel Relvas, enquanto dele, o perseguido, o escrutinado, só faltava "dizerem-nos de que cor são as cuecas" ("Somos todos Artur Baptista da Silva", blogue Aventar, de 28/12/2012). Não perceberam então os defensores de Baptista, ou do que ele disse, que aquela relativização da mentira, aquela transigência com a fraude, era prenúncio e sinal do que viria depois, o monstro das fake news, o mundo da pós-verdade - e hoje da pós-vergonha.

Artur Raul Baptista da Silva foi, ou dizia ser, administrador de uma firma chamada Fábrica Portugal, SARL, e, de facto, o seu caso toca em muita da matéria-prima de que se faz a nossa irrealidade quotidiana: a política, nacional e autárquica, o futebol e seus dislates, a justiça e a imprensa, as instituições da dita "sociedade civil". Verme ou farrapo humano, pouco interessa analisá-lo sob o prisma psicológico, questão que deverá deixar-se aos seus médicos e à sua consciência, se os tiver, até porque tudo quanto se diga neste plano nunca irá além do sabido e consabido nos burlões: megalomania e mitomania, muita frustração e raiva contra as "elites" e os "poderosos", o adleriano "desejo de poder", o sádico prazer em enganar o próximo, o querer sentir-se mais esperto do que os outros seus semelhantes. Mais perturbante é pensarmos que, verdadeiramente, ele nunca nos enganou, que Baptista da Silva situa-se ainda naquela zona cinzenta de impostura e de fraude com a qual estamos dispostos a compactuar, pelo menos até certo ponto (que ele ultrapassou, estupidamente), e que todos os dias nos cruzamos com embustes iguais ou parecidos aos dele, que calamos, toleramos, até para não termos chatices. Talvez não sejamos todos Charlie, mas somos todos, sem dúvida, um pouco Baptistá Silvá.

Entrevistado pelo Observador em 2015, Baptista afirmou que todas as suas previsões se confirmaram e que Portugal, desgraçado, continuava "acorrentado aos pró-nazis financeiros". Lamentou-se do ultraje sofrido, do assassínio vil do seu carácter: "Colam logo libelos às pessoas: é um criminoso, um burlão de extrema-esquerda, diminuem sempre as pessoas." Culpou Cavaco, "o Sr. Aníbal" e o "Sr. Medina Carreira", "o pior ministro das Finanças de sempre". Solidarizou-se com Sócrates, seu colega de infortúnio, chamando-lhe "o coitado que está em Évora como preso 44". Terminou pesaroso, contra mundum, clamando pela verdade, para logo na frase seguinte mentir sob o seu cadastro: "Neste país não há a possibilidade de dizer a verdade. Num país dominado por clientelas políticas e mediáticas. Até disseram que tinha falsificado coisas e tudo. Mas eu não fui condenado e outras pessoas foram." Quando a conversa começou a aquecer, desligou o telefone.

Na reportagem de Sandra Felgueiras no Sexta às 9, sobre os atropelamentos em Santo André, o filho de uma das vítimas mortais de Baptista da Silva, um rapaz novo e do povo, diz, a dado passo, com os olhos rasados de lágrimas, que não acredita na justiça portuguesa. Nós também não. Naquela reportagem diz-se que os 10 crimes que Artur Baptista da Silva cometeu entre 1982 e 1988 levaram-no a ser condenado a 22 anos e nove meses de prisão, mas os cúmulos jurídicos e os sucessivos perdões fizeram com que, até 2010, passasse na cadeia... dois anos.

*Prova de vida (16) faz parte de uma série de perfis.

Historiador
Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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