Banqueiros anarquistas
Jorge Jardim Gonçalves em livro, Ricardo Espírito Santo Salgado, o último capítulo. Quando débitos e créditos não batem certo, há as letras. Depois, acertam-se contas. Os banqueiros acertam sempre as contas.
Jorge, rei casto. Ricardo, o conquistador. Vingaram na vida. Vingam-se da vida. Banqueiros monarcas. Absolutos nos seus reinos. Poderosos na Pátria. No Portugal democrático, nesta democracia da banca, acabou uma dinastia. É muito mais do que o fim de uma geração.
Há sátira dialética de Pessoa no adeus de Salgado e na biografia autorizada de Jardim: "Tão mau é o dinheiro como o Estado, a constituição de família como as religiões." 1922, O Banqueiro Anarquista.
Um século depois, as convenções continuam a ser o que sempre foram. No BES, a família começou a sobrar quando o dinheiro faltou. O banco acaba de ver o capital reforçado e a família decapitada. Está a sair de cena o último dos banqueiros, desaparecem todos os que regressaram com as privatizações.
As confissões não, essas mudaram e muito. Não sem encontrar penitência em Jardim Gonçalves. Menos ainda, a culpa em forma de reconhecimento. Só ressentimento. A religião perdeu-se em off-shores e o BCP ancorou na baía de Luanda.
Sem famílias e capital, a verdade é que a banca privada nacional está agora totalmente reconfigurada. Mais estrangeira. E mais aflita. Os banqueiros tornaram-se administradores-delegados.
De Luanda - Nuno, o bem-amado, virou o africano. De Madrid, Vieira Monteiro, ultramarino no século passado, em vassalagem a Emílio Botin.
E da Catalunha, desde onde o La Caixa conserva convenientemente Santos Silva, o trovador, e Ulrich, o bravo, sabe que o "p" de BPI é português de designação, não de controlo.
Não vivi evidentemente a fase da banca nacionalizada. Onde não havia banqueiros, só designados. E a banca estrangeira nunca chegou a ser intervencionada, porque era residual. Os conselhos de administração eram extensões dos conselhos de ministros. Subiam e caíam uns agarrados aos outros.
A economia de mercado, nos anos 1980, arrastou a lógica do negócio. Despachos e decretos saíram dos relatórios e contas, mas a política nunca desapareceu. Entranhou-se. Empresários a crédito, ministros a débito. Banqueiros tradicionais recuperavam o que tinha sido seu. Champalimaud. Mello. Espírito Santo. Amém, nasceu o BCP!
Jardim já então escrevia livros - a melhor de todas as histórias, dos grupos financeiros surgidos do nada, do capitalismo emergente, do País novo, contemporâneo e empreendedor. No fim, tentou a sucessão, falhou, chegou e foi Paulo Teixeira Pinto - o breve.
Antes, todos, emergentes e tradicionais, uniram-se diante da invasão espanhola, com a investida do Santander na década de 1990. Todos não, um vendeu. Defendidos pelo Estado, a proteger o mercado. Ou seja, contra tudo o que defendiam: o próprio mercado.
O melhor que se pode dizer, 15 anos depois, é que o mercado venceu. Não há centros de decisão nacional que resistam a capitalistas sem capital.
Vale a pena recuar 30 anos, Agosto de 1984, e lembrar o núcleo fundador da Associação de Bancos Portugueses: Fonsecas & Burnay, Pinto & Sotto Mayor, Borges & Irmão, Espírito Santo & Comercial de Lisboa, Totta & Açores, Português do Atlântico, Nacional Ultramarino, União de Bancos Portugueses, Fomento Nacional, Crédito Predial Português. Nuns, as famílias eram ligadas por "&". Nos outros, tudo era português e nacional.
A demissão de Ricardo Salgado não é, portanto e apenas, a estória de mais uma capitulação. São 80% do sistema financeiro de um País inteiro, que ficam nas mãos dos cinco maiores grupos, um controlado por angolanos (BCP), dois por espanhóis (Santander e BPI), outro por prejuízos e desatino (CGD) e outro ainda por um futuro mais que certo - no BES nada será com dantes, mas o seu destino será escrito em língua estrangeira. É uma questão de tempo. E de língua.
Também não é opinião, mas contas. A banca portuguesa deixou de distribuir lucros aos acionistas para lhes pedir capitais. O dinheiro chega e o controlo vai-se.
Nos últimos três anos, a brincar a brincar, 24 mil milhões de euros já foram reconhecidos em imparidades e prejuízos. É uma pipa de massa! Aproximadamente 15% do PIB. Só a intervenção externa salvou os bancos portugueses e evitou que toda a gente percebesse o que se estava a passar. E ainda passa, porque o problema está longe de resolvido.
"Eu libertei-me a mim; fiz o meu dever simultaneamente para comigo e para com a liberdade. Porque é que os outros, os meus camaradas, não fizeram o mesmo?" Podia ser story-telling de Horta Osório, o príncipe perfeito. Mas é premonição, porque continua a ser o banqueiro anarquista de Fernando Pessoa, no século passado.
Ricardo Salgado zangou-se, quando, há alguns anos, escrevi num artigo de opinião que estava na hora de preparar a sua saída do BES. Irritou-se. Era cedo de mais. Carreguei na consciência o peso de uma precipitação. Agora foi demasiado tarde. Para ele. E para o Grupo, a braços com uma falência técnica e irregularidades por apurar.
Há outra forma de dizer o mesmo: a família Espírito Santo perdeu o comando do banco (porque está nas mãos do Banco de Portugal), perdeu o controlo do Grupo (porque está nas mãos dos credores e da justiça) e perdeu a capacidade financeira para se recompor e recuperar tudo o que tinha.
Cada um contará a história à sua maneira. Jardim Gonçalves, os amigos que o abandonaram, Ricardo Salgado, a família desavinda: "o mal verdadeiro, o único mal, são as convenções e as ficções sociais, que se sobrepõem às realidades naturais - tudo, desde a família ao dinheiro, desde a religião ao Estado".
Banqueiros anarquistas na mudança de regime. Não há cognomes disponíveis para a próxima dinastia. Nem magnificência na era que está a terminar.
*Administrador da Fundação EDP