Banha da cobra, teriaga e outras panaceias. 2000 anos de luta contra dores e maleitas

Do tétano à raiva, da epilepsia à frigidez sexual, a todas as dores e maleitas acorreu por perto de dois milénios a teriaga, uma exótica mistura de plantas, primeiro um antídoto contra venenos, mais tarde uma panaceia, onde não faltava o ópio e a carne de cobra. Sobre a teriaga e o unguento que lhe está associado, a banha da cobra, escreveu o médico Joaquim Barradas. Banha da Cobra e Teriaga é o terceiro livro do autor.
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Ainda menino, na década de 1950, Joaquim Barradas não reprimia o fascínio frente aos vendedores da banha da cobra que demandavam o Campo Grande, em Lisboa. Um remoer de palavras convincentes, gestos calculados num esforço cénico, a que se juntava a promessa de todas as curas sob a forma de unguentos, bálsamos e outras panaceias. Volveram décadas. A criança que chegara da sua Moçambique natal, para concluir em Portugal a escola primária, fez-se médico, mas também um curioso da História da Medicina, sem lhe descartar a evolução do pensamento filosófico e o progresso tecnológico. Profissional do Serviço Nacional de Saúde e chefe de Serviço de Cirurgia nos Hospitais de S. Bernardo, em Setúbal, Garcia de Orta, em Almada, e da cidade da Horta, na açoriana Ilha do Faial, Joaquim Barradas fez também do seu interesse científico um pretexto para se lançar nas letras. Aos escaparates nacionais, o autor entregou até ao momento três livros, A Arte de Sangrar de Cirurgiões e Barbeiros (1999), Libelo da Rainha (2017) e, em 2023, um reencontro com as memórias de infância, às quais adicionou décadas de recolha de matéria documental e uma paixão antiga, a resposta aos porquês para, durante dois milénios, a Humanidade depositar esperanças e crenças numa quimera. A banha da cobra, os seus antecedentes e o apregoado poder curativo dos pós e do espírito da cobra, caem, no entendimento de Joaquim Barradas, no âmbito do "conhecimento das coisas simples, mas extraordinárias".

Com a chancela By the Book nasceu Banha da Cobra e Teriaga. Se da banha da cobra não nos faltam referências, que mais não seja pelo uso a que dela se apropriou a voz popular, como sinónimo de intrujice e embuste (mas também uma pomada), da teriaga escapa-se-nos as origens e a sua natureza.

A teriaga, uma exótica mistura de dezenas de plantas medicinais (entre elas canela fina, incenso macho, gengibre ótimo, erva crina, sementes de erva-doce, betume judaico, vinho generoso, mel ótimo despumado), acrescida de ópio, nasceu como antídoto para venenos. Daí, a sua utilização generalizou-se, ganhou a carne de cobra para se fazer um unguento a que se chamou, precisamente, banha da cobra, a panaceia que tudo tratava: tétano, raiva, epilepsia, também o eczema e a sarna. Nas cidades, campos e feiras, os vendedores da banha da cobra foram figuras presentes até ao século XX. Uma longa carreira, povoando o imaginário de médicos, boticários e todos os utilizadores.

"Interessei-me sempre pela História, mas foi na primeira estada nos Açores, em 1989, que pude dedicar mais tempo ao estudo. A vida no arquipélago é mais pacata. Também me dediquei à minha horta [risos]. Aquele solo e clima são incríveis. Após a reforma leio muito, principalmente temáticas relacionadas com a História da Medicina, as origens do pensamento médico e os sistemas filosóficos", adianta-nos Joaquim Barradas, numa conversa no pacato pátio da Casa da Baía, em Setúbal, cidade onde reside.

Sobre o percurso nos livros deste setubalense de adoção, o primeiro a verter da veia criativa e pesquisa meticulosa de Joaquim Barradas tem o sugestivo título, A Arte de Sangrar de Cirurgiões e Barbeiros. "Os médicos atualmente, salvo em procedimentos excecionais, não tiram sangue aos seus doentes, administram-lhes sangue. Durante séculos fizeram o contrário. Quais as razões? Tem a ver com a antiga teoria humoral muito desenvolvida por Galeno, médico grego que viveu no século II d.C. No século XVIII ainda se falava dos seus ensinamentos. A sangria destinava-se a retirar os humores deletérios, aqueles que causavam doenças. Era de um otimismo impressionante [risos]. Na época, não se conhecia a circulação sanguínea, pelo que se achava que o sangue se movimentava por setores. Galeno considerava que os alimentos se transformavam em sangue no fígado e, este, distribuía-o através das veias por todo o corpo. Um sangue nutritivo que alimentava os tecidos. Quando faziam a sangria pensavam que estavam a retirar o sangue de um único setor", esclarece Joaquim Barradas.

No seu segundo encontro com as letras, o médico, enveredou por um episódio da nossa história. Libelo da Rainha (2017) recorda o processo judicial interposto pela rainha D. Maria Francisca para a anulação do seu casamento com D. Afonso VI como mote da narrativa.
Sobre a sua nova viagem literária, o autor de Banha da Cobra e Teriaga sublinha que gosta "de relacionar a História da Medicina com os acontecimentos que lhe são externos, mas que a influenciaram". "A ciência da História baseia-se em documentos e não pode daí fugir. No meu caso, alcanço uma maior liberdade, o que me permite especular e refletir. No caso vertente, o do livro que publiquei este ano, resulta de matéria que venho a coligir há 30 anos. Ouvi falar pela primeira vez na teriaga quando estava nos Açores, um medicamento muito antigo, com 63 ou 64 ingredientes e que inclui o ópio e a carne de cobra. Desde sempre houve um fascínio pelas drogas com efeitos no sistema nervoso central. Uma atração com vários fins, até mesmo transcendentes. Preparadas em segredo, essas drogas contribuíam para criar o ânimo adequado às grandes festas e comemorações. Por exemplo, os Maias, na América Central, faziam reuniões coletivas e tomavam alucinogénios. Viam tudo o que queriam, viam os deuses ." [Sorriso].

No que respeita às origens da teriaga, o seu nascimento não está, de acordo com Joaquim Barradas, destituído da ligação ao "rei Mitridates VI, que governava o Reino do Ponto, um dos pequenos Estados independentes que bordejavam o Mar Negro. Ali residiam os "restos" do Império de Alexandre, o Grande, falecido em 323 a.C. Fui tomando notas sobre o tema e acabei por coligir muita informação".

Recuando perto de 2000 anos, o nosso interlocutor situa-nos num episódio algures no século I a.C.: "Mitridates falou com o seu físico, Catervas, um médico de origem grega, e pediu-lhe um remédio que o protegesse de eventuais envenenamentos. Aquele era um mundo violento. Catervas reuniu todos os medicamentos conhecidos na altura. Pensou da seguinte forma: "A soma das partes combateria todos os males". Como o envenenamento era das patologias mais fora de controlo, nada como reunir tudo. O físico juntou ópio ao preparo, o mitridático. Mais tarde, foi um romano, Andrómaco, natural da Ilha de Creta, no Mar Egeu, nascido no ano 40, que juntou à mistura a carne de cobra e torna o composto na teriaga [do grego theriakis -- besta feroz ou theriake -- antídoto contra venenos]. Passa a ser uma panaceia e não somente para combater venenos. O entendimento era o de que a carne de cobra era imune ao veneno, o que não é verdade, pois está contido numa glândula", refere o autor de Banha da Cobra e Teriaga.

Do livro, na sua página 34, extraímos a seguinte informação sobre os poderes desta teriaga: "Boa para dores de cabeça, surdez, dificuldades de visão, desmaios, tonturas e vertigens, epilepsia, dificuldade em respirar, hemoptises, indigestões, náuseas, doenças do fígado e litíase. Seria também capaz de fortalecer a língua, suavizar o delírio, além de ser um excelente soporífico, calmante e única na cura do tétano."

Figura amiúde referida no livro de Joaquim Barradas, o médico Galeno teve um importante papel no desenvolvimento da teriaga. "É autor de uma obra monumental. Fixou o conceito de doença. Pegou nas teses de Platão e de Aristóteles e condensou isso num sistema. Criou para a medicina uma metodologia e um sistema", enfatiza o nosso entrevistado, ao que acrescenta: "Ou seja, criou referências para os médicos. As referências são os quatro humores/elementos, o ar, a água, a terra e o fogo, ou seja, qualidades como seco, húmido, quente ou frio. E era de acordo com estas qualidades que se fazia medicina. Por exemplo, quando havia febre era o fogo que dominava. Este foi um sistema que imperou por 1500 anos, até ao século XIX. Galeno também introduziu a importância da anatomia na medicina. Repare, ainda no século XIX, os primeiros estudos anatómicos faziam-se para se conhecer a obra de Deus. No que toca à importância de Galeno para a teriaga, esta prende-se com a sua divulgação e aprovação. Galeno publicou dois livros sobre a teriaga. Num desses livros descreve com detalhe a forma de preparar a cobra."

O facto de quase todos os ingredientes da teriaga provirem de plantas do Médio Oriente, dificultava o acesso aos mesmos. "Algumas destas plantas eram adquiridas a comerciantes que vinham da Índia e de outros pontos da Ásia. Os portugueses, quando foram para o Brasil e pretendiam fazer teriaga, não tinham as plantas originais. Fizeram a teriaga brasílica, adaptada à flora local. Mas há mais teriagas, como a dos pobres, composta por menos ingredientes, entre eles as bagas de louro, a mirra e o mel; a teriaga celeste, a teriaga dos camponeses, esta feita à base de alho. A teriaga de Veneza vendeu-se imenso. Ali, no século XVII, faziam uma feira de uma semana com mostra dos produtos e cobras vivas. Em Inglaterra, vamos encontrar muita gente furiosa porque não era consumida a teriaga inglesa, preterida face à veneziana. Também nas Ilhas Britânicas, quando o rei Henrique VIII fechou os mosteiros católicos, muitos padres dedicaram-se à produção de teriaga. Em França, há registo da produção pública de teriaga em Montpellier, a partir de 1628. Em Paris, no Jardim das Plantas, o médico e farmacêutico Moyse Charas, organizou em 1667 a preparação pública de teriaga. Poucos anos volvidos, os festejos atraiam uma multidão", sintetiza Joaquim Barradas.

No século XVII, o cirurgião português António Ferreira, dava uso à sua "teriaga de esmeraldas em mordeduras de cobra. Nem era moído, colocava diretamente o vidro das esmeraldas sobre a ferida", enfatiza o médico e autor.

A referência à banha da cobra parte da utilização da teriaga para aplicação local e esta faz-se com a gordura daquele réptil. "Na realidade o unguento que resultava da preparação da cobra não era, verdadeiramente, gordura, pois este animal tem-na em pouca quantidade."

A partir do século XVIII o valor terapêutico da teriaga começa a ser questionado. "William Heberden, médico inglês publica o livro Anti-Teriaga em 1745. Na obra denunciava a ganância dos fabricantes e, inclusivamente, afirmava que era uma substância tóxica, fervida longamente." Da preparação resultava um "liquido espesso, escuro e com um cheiro duvidoso, mas talvez suportável devido às plantas aromáticas", assim lemos em Banha da Cobra e Teriaga.

Em 1835, "o cirurgião português A. Cardoso insurgia-se contra os produtos de aplicação como a banha da cobra: "Já lá vai (o tempo) dessa polifarmácia unguentária e emplástrica; já não se espera desses bálsamos divinos as milagrosas virtudes que por tanto tempo gozaram"", retrata o livro de Joaquim Barradas, citando as palavras de A. Cardoso.

"Sublinhe-se que a utilização da teriaga e da banha da cobra ainda durou quase dois séculos. Em medicina as coisas para mudarem podem levar muito tempo. A medicina pode persistir em erros durante séculos, ou por causa das mentalidades, ou pela insegurança. Veja-se a sangria que levou 300 anos até ser abandonada. Dou-lhe um exemplo: a descoberta do sistema circulatório punha em causa a teoria dos setores. Os detratores não aceitavam que o sangue passasse pela alma e passasse por aquilo a que chamavam "as partes vergonhosas". Quem descobre a circulação sanguínea é o inglês William Harvey que, em 1628, publica o livro Sobre o Movimento do Coração e do Sangue. Era uma personalidade curiosíssima, apanhava uns camarões no Rio Tamisa, para lhes analisar o órgão pulsante em contraluz. O animal que Harvey mais gostava de abrir era as cobras. Estas, quando estão frias, têm 20 a 30 pulsações por minuto. O médico conseguia observar a sístole (contração) e a diástole (descontração) que, em condições normais, é rapidíssima. Para que perceba o conservadorismo que existia na Academia deixo-lhe uma história: William Harvey morreu com um AVC, mas antes de morrer pediu que lhe fizessem uma sangria na língua. Ele, que tinha descoberto a circulação sanguínea. Sabe, antigamente era melhor errar do que não fazer nada. Luís XIV morreu com uma gangrena diabética. Os médicos ainda faziam o que Galeno prescrevera, ou seja, cortes. Ao ponto de o monarca pedir para não lhe fazerem mais cortes. E revelava algum bom senso."

Portugal legisla em relação à teriaga e teriagueiros no século XV, no reinado de Afonso V. "Na época, o monarca mandou vir uns teriagueiros de Marrocos, como o Mestre Ananias, por achar que aqui não havia gente sabedora. Mas, ficou-se nessa legislação. Julgo que no nosso país se utilizava mais a teriaga dos pobres, entre outras mais adulteradas. Mas isso usou-se em diferentes países", recorda Joaquim Barradas.

O terceiro livro de Joaquim Barradas é também momento para o autor fazer uma reflexão sobre a massificação da prescrição de medicamentos, nomeadamente o capítulo décimo da obra, Outras teriagas. "É um tema delicado, controverso, eu mesmo não tenho certezas sobre isto, mas ponho em causa o sistema em que vivemos atualmente, como se todos fossemos doentes. Pertenço a uma geração que foi acompanhada sistematicamente pelos delegados de Informação Médica. Uma operação eticamente duvidosa. Atualmente, ponho em causa o tratamento do colesterol. Há inúmeros fármacos para baixar o teor de colesterol no plasma sanguíneo. Não há consenso sobre a validade deste tratamento. Em lugar de ser um dos muitos parâmetros plasmáticos quantificados, passou a ser uma entidade que adquiriu estatuto próprio. É claro que não tenho provas definitivas para o que digo, mas a parte contrária também não as tem. Por exemplo, não há um critério para se iniciar um tratamento da tensão arterial, algo que é, muitas vezes, vitalício. Depois, usa-se praticamente o mesmo critério para pessoas que têm uma vida saudável e para outras com outro estilo de vida menos equilibrado. Os erros não estão só no passado, também estão no presente. Nesse sentido, o meu livro também é um alerta, um repensar da atividade médica. Não gosto de afirmar as coisas muito taxativamente, nem de ser muito radical. Dou espaço a outras opiniões."

Banha da Cobra e Teriaga
Joaquim Barradas
By the Book 174 páginas

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