Bandeirantes, jesuítas e guaranis: os paradoxos
Por Buenos Aires, Foz do Iguaçu, Reduções do Paraguai e São Paulo
Como foi possível o Brasil ir além do meridiano de Tordesilhas? Como se fez a obra de síntese entre as missões cristãs e a aventura da busca de novas riquezas de quantos partiram para o interior, apenas com a vontade de trazer metais preciosos e mão-de-obra? As contradições eram gritantes, como na vida: de um lado o reconhecimento de que os índios eram gente que tinha de ser tratada com humanidade; de outro a busca da riqueza e o aproveitamento das oportunidades. No Pátio do Colégio, onde se fundou a cidade de S. Paulo, sentimos o paradoxo. O templo está hoje despojado, pois o culto só foi retomado no século XX, mas permite-nos imaginar a talha, os azulejos e a palavra dos sermões e dos ensinamentos a fluir nesse ambiente intenso. A vila nasceu para ensinar, mas tornou-se o cadinho de uma sociedade nova em busca da magnificência.
A História não se faz, porém, de simplificações ou de julgamentos unilaterais. Sem preconceitos (depois da rota do Padre António Vieira, as resistências e as oposições, dos colonos e dos inquisidores), o que viemos ver foi o diálogo intenso e contraditório entre os índios guaranis, as missões dos jesuítas e os bandeirantes. Temos de entender as raízes, como fizemos com o vudu, o candomblé e o sincretismo religioso, e agora fazemos com os índios. Os patriarcas da civilização paulista são apresentados na entrada do Museu do Ipiranga, nas pessoas de João Ramalho e de Tibiriçá, um aventureiro português de Vouzela (segundo a sua confissão, pai de várias centenas de filhos) e um cacique índio, seu sogro. A eles sucedem-se os bandeirantes (como Raposo Tavares) e a partir dessa iconografia desenha-se a origem da nação. D. João VI compreendeu que a corte no Brasil poderia originar a irreversível emancipação. E o monumental quadro a óleo de Pedro Américo (de 1885) sobre a proclamação da independência de 1822 nas margens do Ipiranga por D. Pedro, reproduzido no Altar da Pátria, representa a glorificação que lembra a gesta bandeirante. E quando, na Estação da Luz, com Celso Lafer, visitámos o Museu da Língua Portuguesa, sentimos que a síntese que nos preocupava, entre trabalho e aventura, se projecta também na nossa língua comum e nas suas várias culturas.
Se os bandeirantes fizeram as fronteiras, os jesuítas moldaram os povos guaranis. Os discípulos de Santo Inácio começaram na Província do Paraguai, fundada em 1604, abrangendo Argentina, Uruguai, Rio Grande do Sul, Bolívia Oriental, parte do Chile, além do actual Paraguai. Antes da missionação, os guaranis praticavam rituais de antropofagia em relação aos inimigos, viviam em poligamia e dedicavam-se a uma economia agrária de natureza recolectora. A implantação de "reduções" (povoações destinadas à "reorientação" dos índios) visou ligar os princípios do cristianismo primitivo com as práticas ancestrais dos índios. Foram 30 os povos organizados pelos jesuítas, cuja existência tem causado, ao longo do tempo, admiração, pelo modelo quase utópico que pretendiam concretizar.
O que resta desses povoados está distribuído pela Argentina (15), Paraguai (8) e Brasil (7), e sete estão classificados pela UNESCO como Património da Humanidade. Visitámos seis das "reduções" classificadas: Trinidad, Jesus de Tavarangue (Paraguai), Santo Inácio Mini, Loreto, Santa Ana (Argentina) e S. Miguel das Missões (Brasil).
As missões jesuíticas expandiram-se no decurso do século XVII, graças a um intenso movimento demográfico que contrariou as epidemias e as mobilizações militares. Em 1647 já havia mais de 28 mil habitantes nas "missões" e em 1732 o número chegou aos 141 mil. Com a extinção da Companhia as "reduções" foram abandonadas à sua sorte, sendo extintas, em resultado das guerras de fronteiras do início de XIX. A epopeia dos jesuítas foi semelhante, nas dificuldades e nos contratempos, à dos bandeirantes: "Escalando aqui abruptas montanhas; atravessando além florestas espessas, desertos sinistros, rios cortados de rápidos, onde muitas vezes as pirogas se despedaçam contra os escolhos. Nas bacias do Paraná e do Uruguai, lutam contra a floresta tropical; afrontam as chuvas torrenciais, os pântanos, o calor húmido 'todos os insectos e todas as pragas que a vingança de Deus enviou ao Egipto'." Mas o maior combate foi contra a mentalidade dos colonos que desejavam contar com a mão-de-obra dos índios, na lógica das "encomiendas", como servos da gleba do feudalismo. Para os jesuítas era inaceitável a escravização dos índios, porque um indígena não era um infiel, mas alguém que merecia a conversão, o que obrigaria a criar comunidades cristãs de acordo com as tradições locais.
Neste sentido, os jesuítas protegeram e desenvolveram a consciência identitária dos guaranis, favorecendo relações de intercâmbio entre diferentes comunidades. Assim, cada "redução" pressupunha uma organização política baseada no poder colegial (Cabildo), constituído pelos caciques e por dois padres jesuítas (um com funções seculares e outro com funções espirituais) e uma organização económica, centrada na produção de bens, na troca (do ferro, do algodão), no ensino e na formação. A "redução" desenvolvia-se em torno da igreja, imponente, de três naves, com baptistério, de estilo barroco com elementos da cultura índia - como a erva-mate. Em frente de cada templo estendia-se uma praça muito ampla rodeada das casas de habitação, com galerias de arcos e colunas. Em Jesus de Tavarangue vimos uma aldeia incompleta, refundada em 1759 e abandonada em 1768, mas no Loreto ou em Santa Ana as construções ainda estão ocultas pela floresta tropical.
A viagem foi única. Milhares de quilómetros percorridos por terra, mar e ar. Tivemos a sensação de visitar o que ainda é pouco conhecido, mas absolutamente espantoso, um misto de cidades ideais e de localidades fantasmas.
E se dúvidas houvesse sobre a magia da peregrinação, ficou-nos ainda a emoção de Colónia do Sacramento, o ponto mais ao sul do Equador com administração portuguesa, e a invocação, na magnífica cidade de Buenos Aires, por Jorge Luís Borges, dos portugueses seus antepassados.