Bancarrota nos relvados

Os grandes momentos entre a elite do futebol nacional não passam de memórias mais ou menos distantes. Gestão ruinosa, negócios duvidosos e dívidas, muitas dívidas, arrastaram alguns clubes ilustres para os dias mais negros da sua história. Será que há salvação?<br />
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SOBRE A ESTAÇÃO de Paranhos do Metro do Porto está um sinal perene da derrocada de um clube histórico: as ruínas de uma bancada do Estádio Vidal Pinheiro servem de cenário aos treinos das escolinhas, enquanto a sociedade de transportes não decide o que faz com o terreno. Esta imagem do Salgueiros, hoje moribundo, serve como paradigma do lado mais negro da história de um clube de futebol.

Em todo o caso, as aparências também podem iludir quem, alguns quilómetros à frente, passar à porta da casa do Boavista. O Estádio do Bessa é um recinto para trinta mil lugares, com a classificação de quatro estrelas pela UEFA. Foi construído há menos de uma década para acolher jogos do Euro’2004, mas não deixa de ser uma espécie de palacete de fidalgo arruinado: ao contrário do vizinho Salgueiros, o Boavista tem casa, mas tem contas ainda mais desastrosas.

Com maior ou menor estrondo, vários emblemas de peso do futebol nacional têm sucumbido nos últimos anos. Aos dois históricos da cidade do Porto podem juntar-se exemplos de uma mão-cheia de clubes que já estiveram na ribalta do futebol português, mas que hoje apenas guardam memórias desses tempos. Farense, Estrela da Amadora, Odivelas, Felgueiras ou Leça estão todos no mesmo barco: as dívidas minaram os alicerces do futebol profissional e afundaram-nos.

Para Camilo Lourenço, jornalista especializado em economia, clubes com dívidas astronómicas como alguns destes não têm qualquer viabilidade financeira: «A relação entre despesas e receitas é abissal. A única solução que vejo para o Boavista, por exemplo, é algum milionário doido comprar o clube…»
Afinal de contas, como foi possível chegar a este ponto? Há gestões ruinosas, leviandade de quem teria responsabilidade de fiscalizar as contas e, nos casos de polícia, falta de prontidão e até negligência dos tribunais.

Estas situações só podem evitar-se no futuro com maior rigor por parte da Liga, que gere o futebol profissional em Portugal, e, quando há falsificação de contas, com uma actuação mais eficaz de uma justiça que se quer célere, defende Camilo Lourenço. «No futuro, a Liga devia estabelecer uma relação entre despesa e receita. As despesas correntes nunca deviam ascender a 55 por cento. Aliás, os salários em atraso, tão comuns no futebol português, são um sinal claro de má gestão. Os regulamentos não deviam ser tão frouxos; a falta de três meses de pagamento deveria representar descida automática de divisão. E depois há que julgar rapidamente os casos de justiça», advoga o economista.

VOLTEMOS, POIS, ao ponto de partida. Às ruínas do Vidal Pinheiro, que nos recordam que o Salgueiros foi o primeiro histórico portuense da primeira divisão a sucumbir e a ficar até sem campo para praticar futebol.

O clube vendeu o terreno no início da década à Metro do Porto por 8,75 milhões de euros, mas praticamente nem viu a cor do dinheiro. Grande parte da verba foi canalizada para pagar ao credor Almerindo Rodrigues, administrador da cadeia de lojas de electrodomésticos Rádio Popular, que em inícios da década de 1990 havia feito um empréstimo ao clube… precisamente para comprar o terreno do Vidal Pinheiro.

Segundo Jorge Viana, presidente da comissão administrativa que sucedeu ao presidente José António Linhares, em 2004, quando já se percebia a grave crise do clube, os empréstimos a juros altos aos bancos e a particulares foram o início do calvário salgueirista: «Anos consecutivos de má gestão resultaram num passivo que aumentou descontroladamente durante a presidência de Linhares. Quando tomei posse, as contas eram tão pouco claras que não chegámos a saber ao certo qual era o passivo do clube… Rondaria os trinta milhões de euros...»

A saída de José António Linhares da presidência, em 2004, precipitou a crise no futebol profissional: o Salgueiros foi impedido de inscrever jogadores na época 2004/05, na sequência de dívidas ao Estado. Na época seguinte, o futebol sénior deixou de existir.

Em Outubro de 2009, Linhares foi condenado a três anos de prisão com pena suspensa por crime fiscal e abuso de confiança relativos ao seu consulado no clube, tendo ficado provada a retenção ilegal de aproximadamente três milhões de euros ao fisco e à segurança social.

Carlos Abreu, presidente na era anterior a Linhares, acabou por suceder a Jorge Viana, como líder de uma nova comissão administrativa. Porém, não acabaram os casos mal explicados no clube.

Perto do antigo Vidal Pinheiro, em Arca d’Água, fica outro terreno abandonado – «transformado» num lago improvisado à mercê de pescadores de ocasião –, cedido em 1997 pela Câmara do Porto, à data presidida por Fernando Gomes, e onde o clube deveria ter construído o seu novo recinto. Numa situação económica difícil, e com 14 penhoras pendentes no valor de 10,4 milhões de euros (uma delas a Almerindo Rodrigues, ainda credor do clube), o Salgueiros não conseguiu evitar que o terreno fosse vendido em hasta pública em 2006. Compradores? Um misterioso licitador arrematou o terreno por 15 milhões de euros, mas entretanto desapareceu.

Quem acabou por ficar com as três parcelas, a troco de três milhões de euros (com a segunda melhor proposta) foi a Predial III, uma sociedade imobiliária que é propriedade de Carlos Abreu, actual presidente do Salgueiros, e de Nuno Cardoso, ex-presidente da Câmara do Porto e vereador do Urbanismo à data em que a autarquia cedeu os terrenos ao clube. Abreu, que esteve incontactável apesar das várias tentativas da NS’, já explicou noutras ocasiões que o clube poderá recomprar-lhe os terrenos pelo preço que a sua empresa pagou, acrescido de juros.

Certo é que nada garante que, no futuro, aquilo que estava destinado a ser um estádio de futebol se transforme num negócio imobiliário, apesar das condicionantes do Plano Director Municipal (PDM) para a zona de Arca d’Água: permite apenas edifícios com rés-do-chão e primeiro andar e tem como obrigatoriedade a construção de uma zona desportiva. Estas limitações poderiam ser contornadas com a edificação de uma piscina ou de um court de ténis englobados num condomínio de luxo. No entanto, diz quem conhece o processo, enquanto se mantiver em funções o actual executivo camarário, liderado por Rui Rio, é altamente improvável que avance um projecto deste tipo.

HOJE, O SALGUEIROS não tem estádio; joga em casa emprestada no campo do Senhora da Hora (no concelho de Matosinhos). Na verdade, cada vez que sobe ao relvado, o Salgueiros já nem sequer tem o mesmo emblema nem o nome original. Na impossibilidade de inscrever jogadores nos campeonatos seniores desde 2004/05, a comissão administrativa decidiu criar um novo clube, em 2008: o Salgueiros 08, que compete na primeira divisão dos campeonatos distritais da Associação de Futebol do Porto.

A águia do emblema do clube original deu lugar a uma fénix renascida, mas mantém-se a camisola encarnada do «velhinho Salgueiros», como diz o hino do clube. E mantém-se sobretudo a mística: a famigerada alma salgueirista, que bate recordes de assistência nos distritais do Porto. Apesar de jogar vários escalões abaixo da elite do futebol nacional, o Salgueiros tem nos seus jogos assistências superiores a muitos clubes da Primeira Liga. Na temporada passada, levou cinco mil adeptos ao Estádio do Bessa, num jogo em que o Ramaldense (outro clube do Porto) pediu a casa emprestada ao Boavista para fazer maior receita, algo que não é caso raro com outros adversários.

«O 08 é uma manifestação de vivacidade mas não é a prova do ressurgimento do Salgueiros. Como a bola voltou a saltar, os sócios esquecem-se do passado recente e voltam a não fiscalizar os negócios da actual direcção. O futebol está de regresso e todos se contentam, mas o alicerce está podre…», argumenta Jorge Viana.

Certo é que, de momento, esta estratégia serve para animar as hostes e para o clube ir subindo escalões até chegar o momento de o 08 se fundir com o Sport Comércio e Salgueiros, que em 2011 completa cem anos de existência.

Até lá, é necessário ir abatendo o passivo com a grande fonte de receita do clube: o bingo. Situada na zona da Trindade, aquela que é a mais credenciada sala de jogo da cidade do Porto é a grande fonte de receita do clube e encaixa um valor estimado em um milhão de euros anuais. O contrato de exploração deste negócio, conforme aprovado numa assembleia geral do clube, está a cargo de Almerindo Rodrigues, precisamente o maior credor individual do Salgueiros.

SE O SALGUEIROS é quase centenário, o Boavista tem 107 anos de história, mais de milhar e meio de atletas em diversas modalidades e nove mil sócios pagantes. Melhor do que estes números para aquilatar a grandeza axadrezada, só mesmo recordar que em 2000/01 a formação então orientada por Jaime Pacheco se sagrou campeã nacional (um feito que, fora dos três grandes, só o Belenenses alcançara em 1945/46). O Boavista foi também o clube de vários brilharetes nas provas europeias, com 25 participações na Taça UEFA e três na Liga dos Campeões.
Porém, nas duas últimas épocas, a descida do futebol sénior foi a pique.

No final de 2007/08, uma decisão da Comissão Disciplinar da Liga puniu o Boavista com despromoção à Liga de Honra por coacção desportiva no âmbito do megaprocesso Apito Final. Na época passada, o clube baixou à segunda divisão – zona norte. E, no início da presente temporada, a luta da actual direcção presidida por Álvaro Braga Júnior passou por inscrever a equipa nos campeonatos nacionais: para tal, teve de negociar dívidas prementes da ordem dos setecentos mil euros a 12 ex-jogadores e três ex-treinadores, ainda relativas ao tempo em que era presidente João Loureiro (filho do major Valentim Loureiro, o homem que guindou o clube para a alta-roda do futebol nacional). O acordo permitiu a inscrição da equipa que agora luta pela manutenção no terceiro escalão do futebol nacional.

Além de contestar a decisão disciplinar do Apito Final, o Boavista tem outras razões de queixa. A principal passa pela discrepância de apoios autárquicos aquando da construção do novo Estádio do Bessa para o Euro’2004. Algo que está patente no relatório do Tribunal de Contas, em que se verifica que em apoios indirectos à construção dos recintos a Câmara do Porto, à data presidida por Nuno Cardoso, atribuiu cerca de 88 milhões de euros ao FC Porto e apenas um milhão de euros ao Boavista.

António Cardoso, um dos primeiros sócios a opor-se a João Loureiro e actual director do clube axadrezado, reconhece a discriminação nos apoios da autarquia, mas discorda do facto de esta ter sido a génese da derrocada do clube, conforme tem sido publicamente propalado por João Loureiro desde a sua saída: «O descalabro total do Boavista decorreu da má gestão e não da construção do estádio (a cargo da empresa Somague). Os sócios aprovaram em assembleia geral a construção de um recinto que custaria vinte milhões de euros e o orçamento derrapou três vezes até aos 65 milhões. Além disso, há que apurar onde pára o dinheiro da venda de cerca de 130 apartamentos (construídos pela empresa J. Camilo) comercializados nas imediações do estádio, alguns que ainda hoje não têm licença de habitabilidade, bem como, no caso das contas da SAD, onde estão as verbas dos direitos televisivos, dos prémios da UEFA e 32 vendas de jogadores que João Loureiro fez…»

NESTE MOMENTO, o Boavista tem o estádio como grande património, mas nenhuma fonte de receita para fazer frente às dívidas a fornecedores, ex-atletas, fisco e segurança social. Entre clube, que detém o património e todas as outras modalidades, e SAD, que gere o futebol, equaciona-se um passivo na ordem dos cem milhões de euros, conforme é confirmado por Joaquim Teixeira, que sucedeu a Loureiro como presidente em 2007: «O passivo da SAD era de 57 milhões de euros, sobretudo por dívidas ao Estado e a ex-jogadores, e o do clube era de 43 milhões, quase tudo relativo à construção do estádio. Este número já deve ter mais alguns juros em cima.»

Uma das primeiras medidas de Teixeira quando tomou posse foi requerer uma due diligence às contas do clube, «contra a resistência de muitos», fazendo fé nas suas palavras. «Só não pedi uma auditoria mais completa porque esta demoraria mais de seis meses a estar concluída e custava duzentos mil euros, algo que o clube já na altura não podia comportar.»

O resultado dessa avaliação do universo financeiro está com a Polícia Judiciária, que em Outubro de 2009 divulgou estar a investigar vários negócios relativos à presidência de João Loureiro. Um dos mais polémicos é o da venda do Lote 8 do Estádio do Bessa, onde hoje fica o health club Holmes Place. Nesse negócio, o Boavista terá vendido por 3,75 milhões de euros, às 09h30 da manhã, uma fracção por baixo de uma bancada do Bessa à Elepê, empresa de João Bartolomeu, presidente da União de Leiria. A mesma fracção foi revendida às 11h00 do mesmo dia por 12,8 milhões à Sofinac, uma sociedade de fundos de investimento imobiliário.

Ou seja, uma diferença de nove milhões de euros com uma hora e meia de intervalo entre os dois negócios. «Como é que é possível um “milagre” desses? Quem ficou com esse dinheiro?», pergunta António Cardoso, que acusa o antigo presidente do conselho fiscal, José Lello (actual deputado pelo PS na Assembleia da República), de «assinar de cruz» as contas do clube e aponta o dedo a outros ex-directores que «usaram o Boavista como trampolim para subir na vida». Aguarda-se as conclusões desta investigação.

Noutro processo, João Loureiro e os antigos administradores da SAD do Boavista Carlos Pissarra e Vítor Borges começaram a ser julgados, no início deste ano, por fraude e abuso de confiança fiscal, acusados de terem lesado o Estado em cerca de 3,4 milhões de euros, entre 2001 e 2004.

No meio de tantos casos e de um passivo colossal, fica a pergunta: há futuro para o Boavista? O ex-presidente Joaquim Teixeira, que deixou a presidência do clube após ter caído num embuste - um falso investidor, Sérgio Silva, prometeu injectar quarenta milhões no clube, mas o dinheiro nunca apareceu e Silva acabou detido pela PJ –, diz que a salvação depende da extinção da SAD.

«Eu nunca assumi a SAD quando era presidente do clube, por ter sido informado de que esta tinha capitais próprios negativos», sublinha. O antigo presidente aponta a estratégia do Salgueiros como caminho a seguir: transferir o futebol sénior para o clube e recomeçar a competir desde os escalões mais baixos, o que pode muito bem acontecer já na próxima época. Os vizinhos arruinados poderão tentar agarrar-se à mesma tábua de salvação.

Duas referências voltaram a pegar nas chuteiras
Fernando Almeida e Jorge Silva são muito mais do que dois futebolistas veteranos. Eles são as melhores testemunhas do declínio do Salgueiros e do Boavista. O avançado brasileiro Fernando Almeida, de 42 anos, chegou a Portugal em 1994 para jogar na primeira divisão e ficou em Vidal Pinheiro até 2000, tendo tido companheiros de equipa como Deco (que passou pela equipa de Paranhos na temporada 1998/99). Hoje, Almeida, segurança de um stand de automóveis, joga ao lado de um lote de jovens com idade para serem seus filhos, a maior parte proveniente dos juniores do Salgueiros.

Ele é uma das figuras do Salgueiros 08 nos distritais do Porto e conta à NS’ como depois de já ter pendurado as botas voltou a jogar por amor à camisola: «Fui fazer um jogo de “velhas guardas” e o Pedro Reis [ex-capitão de equipa nos anos 1990 e actual treinador do Salgueiros 08] convidou-me para voltar a jogar, porque o clube precisava de referências como eu...» Fernando Almeida aceitou, ficou espantado com o entusiasmo dos adeptos em todos os jogos e envolveu-se ainda mais: agora até treina os miúdos das escolas de formação do clube.

Jorge Silva é outra referência, mas no Boavista. Depois de uma carreira profissional em que se sagrou campeão nacional, na época 2000/01, o médio de 34 anos enverga a braçadeira de capitão de uma equipa que luta pela manutenção na segunda divisão. Ele é o último dos resistentes e a única prova palpável para o restante plantel de um Boavista que já foi triunfal. «Chega a ser frustrante jogar aqui e pensar naquilo em que o clube se transformou. Há uns anos não nos faltava absolutamente nada e agora nem sequer temos patrocínios nas camisolas», diz o jogador, aproveitando para prestar homenagem aos adeptos mais fiéis, que, jornada após jornada, acompanham o clube. Jorge Silva manifesta ainda a sua compreensão para com o esforço da actual direcção, liderada por Álvaro Braga Júnior. «Aparentemente, só uns lunáticos pegariam no Boavista nesta situação. Eles fazem o que podem com apoios quase nulos e já conseguiram fazer o impensável», diz Jorge Silva, que confessa ter regressado ao seu clube do coração não só por um motivo sentimental mas também para salvaguardar a sua posição relativamente a dívidas antigas de que ainda é credor da SAD.

Farense, um centenário ligado à máquina

…Mas agarrado à vida. Vender o estádio para pagar a dívida de dez milhões de euros é o objectivo que alimenta o sonho e a esperança de o clube algarvio voltar à ribalta.

TEXTO MANUEL RODRIGUES, fotografia CARLOS VIDIGAL 

NA ÉPOCA de 1995/96 participou na Taça UEFA, em 2002 desceu à Divisão de Honra e passados três anos desistiu das provas oficiais, arrancando, logo a seguir, porém, para uma segunda fase da sua existência, no que diz respeito ao futebol. Em paralelo, as dívidas continuaram a amontoar-se, de tal modo que hoje em dia urge eliminar um passivo na ordem dos dez milhões de euros. É este o quadro do Farense dos últimos anos, pintado com muita lágrima e um esforço titânico, que não impede, todavia, que o mais popular clube do Algarve – festejou o centenário no início do mês – permaneça ligado à máquina, numa gigantesca luta pela sobrevivência.

A exemplo de outros emblemas, o Farense gastou o que não devia nem podia e os seus responsáveis perderam o controlo da situação. Num curto espaço de tempo, como se deu a entender, o clube desceu do céu ao inferno, trajecto com a expressão mais alta no futebol, que em vez de medir forças com o Benfica ou o Sporting passou a defrontar vizinhos de ínfimo significado no panorama desportivo nacional.

Cortaram-se as despesas mas, a bem dizer, deixou de haver receitas. Um eventual acordo com a Câmara de Faro, para venda do Estádio de São Luís e consequente eliminação do passivo, arrasta-se ano após ano, sem solução à vista. Curiosamente, ninguém aponta culpados e os próprios adeptos refugiam-se na máxima de que «o passado já lá vai». Nas imediações do complexo ou junto ao quiosque que outrora era ponto obrigatório de conversa, os farenses dizem que «não houve pulso para cortar a direito» e que todos os dirigentes da altura foram também «atraiçoados pelos apoios prometidos e nunca dados». Para a maioria, o que conta, agora, é o presente – a equipa está a lutar pela subida à II Divisão. 

CARLOS COSTA sentiu como poucos a crise e tem um registo digno de figurar em qualquer compêndio de recordes. Chegou ao clube em 1995, para integrar o plantel, viveu momentos altos e depois acompanhou a vertiginosa descida. Jogou em todos os escalões com o leão algarvio ao peito, desde a I Divisão aos Regionais, e esteve também na reconstrução do futebol, depois da já citada desistência. «Guardo comigo uma mescla de sentimentos…

Estive no Farense de projecção europeia e naquele que viveu a pior fase da sua existência. Construí muita coisa com a cidade, com os adeptos. Não foi mais um clube na minha carreira. Quase 15 anos é um período enorme da nossa vida», sustenta o ex-jogador, homem de rija têmpera, que dava tudo em campo. «Quanto mais se caía, mais tristeza sentíamos. Lembro-me, mesmo assim, de que os adeptos das povoações pequenas onde jogávamos, já na III Divisão, tinham enorme apreço pelo Farense e pela grandiosidade do emblema. Sabe, às vezes era isto que mais nos custava a engolir», confessa o antigo futebolista à NS’.
A luta dos futebolistas e funcionários do Farense foi então por demais conhecida, face a vários meses de ordenados em atraso («se calhar anos, falo por mim», deixa escapar Carlos Costa entre dentes) e inúmeras dificuldades. «Fomos dos primeiros a falar em greve no futebol mas acabámos por concluir que isso seria mais prejudicial que benéfico. O grupo era muito unido, aliás, não foi por aí que o Farense caiu», adverte.

O FUTEBOL comanda a vida de quase todos os clubes e é, sobretudo, um jogo de emoções. A pressão dos sócios e da cidade marca pontos e todos querem resultados, não olhando a meios para os conseguir. «Os dirigentes deixaram-se levar, às vezes por vaidade, nunca medindo o fosso entre o que podiam pagar e o que prometiam», assinala Carlos Costa. No caso do Farense, a forte ligação com a câmara foi um balão que se esvaziou, tal como sucedeu com a construção civil. «A sociedade passou por várias alterações e a torneira começou a fechar-se.

Os clubes beneficiam imenso do poder político, desde que comunguem dos mesmos sentimentos, mas se houver divergências acentuadas não é fácil dar a volta», acrescenta, como que a lançar mais umas achas para a fogueira da justificação da crise dos algarvios. «Um culpado? Culpado concreto… não, não é justo apontar este ou aquele.»
De facto, que importa agora apontar responsáveis? É o que pensa, igualmente, José Manuel Reis, secretário técnico do Farense, há 44 anos no futebol, metade deles na Associação do Algarve, toda uma vida dedicada à mesma causa. «São vários os factores que levaram a este estado de coisas, muito mais difícil é individualizar culpado… Posso dizer, isso sim, que alguns trabalhadores deram tudo a esta casa, foram constantemente o elo de ligação com a equipa, mesmo com meses e meses de ordenados em atraso. Porquê? Pela carolice, por amor ao clube e por acreditarmos que era possível dar a volta por cima.»

José Manuel Reis é o mais antigo dirigente de um clube algarvio em actividade e já foi galardoado com a Medalha de Mérito Desportivo pelo governo, com o Grau Prata da Câmara Municipal de Faro e com medalha do Governo Civil de Faro pelos serviços prestados ao futebol. E já chorou, triste, cheio de mágoa, por ver o emblema do seu coração nas ruas da amargura, «apesar do currículo que ostenta. As décadas de oitenta e noventa foram de glória e o São Luís era considerado um inferno pelos visitantes, devido ao ambiente criado na cidade. Na final da Taça de Portugal [1989/90] enchemos o Jamor e até pessoas de Olhão nos foram apoiar», conta, de olhos postos no infinito.

NO PERÍODO ÁUREO o Farense tinha cerca de dez mil associados, hoje mal chega aos 2500, mas, mesmo assim, ainda conseguiu levar dois ou três milhares de adeptos ao Estádio Algarve, em plena crise. «As pessoas foram desmobilizando e conheço alguns sócios que nunca mais foram ver o Farense», refere Carlos Costa. No entanto, «a maioria mantém a chama acesa e acredito que voltará se o clube recuperar». José Manuel Reis reforça a ideia, sustentando que «mesmo nos Distritais havia mais gente a ver o Farense do que nos jogos da U. Leiria na Liga principal.»

As condições do Estádio de São Luís pioraram com o passar dos anos e há certas zonas algo deterioradas. O clube não dispõe de meios e as receitas, que vão da quotização a algumas parcerias publicitárias, não chegam para nada. Acresce que não há mecenas dispostos a investir e até a edilidade adia protocolos. Só a venda do estádio, qual galinha dos ovos de ouro, pode afastar as nuvens negras que teimam em pairar sobre o clube [ver caixa «A esperança do presidente»], batalha em que o presidente António Barão está empenhado.

Enquanto tarda a resolução, enquanto o milagre não surge e o passivo é um monstro difícil de abater, prossegue a luta pela sobrevivência. «Voltar à ribalta? Bem, agora, estando de fora e não querendo parecer incorrecto, a verdade é que passaram aí uns dez anos e pouco se evoluiu», constata Carlos Costa. «No entanto, para haver um Farense mais forte, isso não depende só das pessoas do clube. Urge que se conjuguem esforços, com a câmara, com o Turismo.»

Reconhecendo que não é competência da edilidade salvar o emblema, Carlos Costa apela à obrigatoriedade de se fazer alguma coisa e aproveitar o património para saldar a dívida. «As acções têm de convergir, todos os farenses precisam de remar para o mesmo lado», sob pena de se perder uma referência histórica do nosso desporto.

Segundo José Manuel Reis, a receita consiste em tentar que «a máquina continue ligada, apesar de a situação ser péssima mesmo a nível do país. Mas quem chega aos cem anos não pode perder a fé de um momento para o outro», preconiza. Subir em ano de centenário, aliás, é uma das metas que vai alimentando aquela fé. «A subida de escalão era essencial. A partir daí, acredito plenamente, esta direcção punha o Farense de pé. Apareciam mais receitas, mais patrocinadores. Se confio? O meu grande sonho é voltar aos dias felizes e espero que isso ainda aconteça», conclui, lançando um ar de aprovação para Carlos Costa, que retribui com o sorriso da esperança.

Retalhos da vida de um algarvio

Corria o mês de Abril do ano de 1910 quando um grupo de jovens, sob influência de marinheiros ingleses, fundou o Sporting Clube Farense, cujo centenário acabou agora de ser festejado (no passado dia 1). É o mais representativo clube do Algarve, ocupando um honroso 11.º lugar no ranking do futebol português. Foi o primeiro emblema algarvio a ter iluminação no estádio (1960) e o primeiro a possuir relvado (1971), sensivelmente na altura em que se estreou na então I Divisão.

O Farense subiu a escada do êxito e andou lá por cima nas décadas de oitenta e noventa. Disputou uma final da Taça de Portugal (perdeu com o Estrela da Amadora, em 1989/90), foi 5.º no campeonato em 94/95 e na época seguinte participou na Taça UEFA, sendo eliminado pelos franceses do Lyon (0-1 em cada uma das mãos).

Estava-se no período áureo e a equipa de futebol, sob o comando do catalão Paco Fortes, fazia as delícias de todos os adeptos. O Estádio de São Luís enchia regularmente e a cidade vibrava com as proezas de Portela, Jorge Soares, Miguel Serôdio, Hugo, Carlos Costa, Pitico, Hajry, Hassan, Djukic, Sérgio Duarte, Helcinho e tantos outros. O estado de graça durou até ao início do século.

São sobretudo problemas de ordem financeira que levam à derrocada. Não há dinheiro para nada e os salários em atraso fazem parangonas nos jornais e televisões. A descida à Liga de Honra, em 2002, é o princípio do fim, e o turbilhão que se segue empurra o clube para os Distritais. Nem uma SAD nem accionistas espanhóis impediram o avolumar das dívidas, hoje à volta dos dez milhões de euros. Vender o património – o Estádio de São Luís – é a receita preconizada mas continuamente adiada.
A equipa principal disputa agora a fase final do campeonato da III Divisão, tentando a subida ao escalão secundário. Para lá do futebol sénior, o clube tem mantido actividade em todos os escalões de formação e dedica-se também a outras modalidades, ocupando o basquetebol um lugar de especial relevo. Ao todo, movimenta mais de um milhar de atletas.

A esperança do presidente

António Barão é o presidente do Farense e um dos mais entusiastas na mensagem de esperança transmitida aos adeptos. Mas está, também, ciente das enormes dificuldades que tem em ombros. «Só eliminando o passivo podemos arrancar para outro tipo de gestão e alguma estabilidade. A venda do Estádio de São Luís é fundamental e a Câmara Municipal de Faro continua a analisar o projecto.»

António Barão sabe que não há muito mais por onde espremer, até porque a própria edilidade está em falta com o protocolo. «A câmara diz que não tem dinheiro e nós não temos recebido o estipulado para pagamento da formação e despesas com a luz, água, etc.», refere o presidente, salientando, contudo, que não pretende ficar dependente do apoio camarário: «O Farense só precisa de uma base para se projectar e gerar receitas.»

A exemplo de outros testemunhos, Barão não quer olhar para o passado e diz que os clubes não têm culpa das crises. «A responsabilidade pertence aos homens. Não vou arranjar culpados e sei das dificuldades comuns a estas colectividades, mas houve imensas falhas de gestão e gastou-se muito acima do devido.» E agora? «Levantar a cabeça e pensar na grandeza do Farense.»

As comemorações do centenário deram mais força a quem dela tanto necessita e o presidente até tem um sonho, rumo à sobrevivência – subir de divisão e vender o património. Construir uma miniacademia e apostar assim num espaço próprio para a formação... Afinal, quem chega aos cem anos não se pode deixar abater!


«Os comerciantes andavam felizes»

Em Faro há a perfeita consciência dos erros do passado. «Agora já não se pode fugir às responsabilidades e quem abusar até vai preso», comenta um adepto para outro, após testemunhar parte da conversa da reportagem da NS’ com o marroquino Hassan, outra referência das épocas de ouro, um goleador que chegou a ser transferido para o Benfica e que hoje treina os juniores do Farense.

Estamos nas imediações do café do estádio e o movimento faz-se sentir, muito aquém, contudo, do registado quando a equipa estava na I Divisão e até os treinos tinham assistência. Agora, o grupo de trabalho, à base de amadores, só ali chega ao fim da tarde. Joaquim Mendes, o treinador, já desceu ao seu gabinete, não sem que antes desse conta de como ficou «impressionado com as manifestações à volta do clube, que continua a ser uma referência do país, mesmo na III Divisão». Há cerca de um mês a trabalhar em Faro, o técnico fala de «um gigante adormecido» e promete unir esforços no sentido de «alcançar a promoção. É um desafio difícil mas bonito. Ficávamos todos ligados ao centenário».

Voltamos a Hassan e ao café. «O clube foi mal gerido e os problemas financeiros cresceram. Nem vale a pena falar nisso», atira o marroquino. «Agora o Farense começou do zero e caso se concretize a venda do estádio acredito que pode voltar aos grandes palcos», considera.~E lembra: «Vinha aqui muita gente ver os nossos jogos, os grandes passavam um inferno, enfim, acho que nessa altura estivemos no topo. O futebol do Farense mexia com toda a cidade e os comerciantes andavam felizes.»

Os tempos são outros e a felicidade, assim de repente, parece que já não mora aqui. Mas se a bola entrar na baliza do adversário, num qualquer minuto de um qualquer domingo, por certo que voltarão os sorrisos. «O Farense vai subir» é a frase que ecoa. Chegará para sarar todas as feridas?


Cartão amarelo para o Odivelas

É de tensão, consternação e revolta o ambiente que envolve o Odivelas Futebol Clube (OFC). Em jogo está o processo de insolvência que, a ser executado, põe fim a um percurso desportivo que deu os primeiros passos há cerca de sete décadas. Perante a ameaça de morte que pende sobre o clube, muitas acusações e discussões acesas têm entrado em campo. Um terreno onde a água e a luz foram cortados por falta de pagamento.

TEXTO ANA FONSECA

NO TERRENO do Odivelas, perante o olhar atónito de centenas de associados, enfrentam-se duas equipas. Uma, liderada por Humberto Fraga, presidente da última direcção eleita, cuja entrada nas instalações do clube está proibida; a outra tem como porta-voz Luís Guilherme Baptista, presidente do conselho de administração da Odivelas Futebol (SAD) e membro da comissão que o administrador de insolvência nomeou para ajudar na gestão do clube.

A troca de «mimos» tem essencialmente como meio de comunicação dois blogues aparentemente criados para o efeito, onde os sócios também expressam as suas vivas e muito pouco abonatórias opiniões sobre o gestão que, principalmente nos últimos anos, norteou os destinos do OFC. Basta dizer que «há mais de cinco anos não se realizam assembleias de sócios, muito embora paguem as quotas regularmente», garantiu à NS’ um dos sócios do clube.

Mas contactados pela NS’, Luís Guilherme Baptista escudou-se no silêncio a que o obriga o processo de insolvência e Humberto Fraga optou por terraplenar o terreno onde pensa regressar em peso logo que as «fortes possibilidades de regularização da dívida» se concretizem. «Agora não interessa entrar em polémicas, o importante é recuperar o clube», afirma, ladeado pelos restantes elementos da direcção, num café situado nas traseiras do complexo desportivo do Odivelas.

A «fórmula mágica» a que Humberto Fraga se refere – embora tenha recusado confirmar ou desmentir a versão avançada por um jornal local e que já é discutida por muitos sócios – poderá passar pelo adiantamento de verbas relativas aos direitos de formação dos atletas Roderick Miranda e Ruben Pinto. O primeiro trocou o Odivelas pelo Benfica com 9 anos e o segundo transferiu-se para a Luz aos 16, há cerca de seis anos.

Em causa pode estar também o interesse do clube dos encarnados em fazer do Odivelas Futebol Clube o seu pólo de formação na área da Grande Lisboa, complementando assim o que detém no Seixal, na Margem Sul, o que facilitará a vida, em termos de deslocação, aos jovens atletas e respectivos pais. Confrontado com esta hipótese, Humberto Fraga respondeu que «o centro de formação do Benfica não está em questão. Podem sim fazer-se acordos pontuais, como aliás já aconteceu anteriormente».

APESAR DA RECUSA em levantar o véu sobre o que tem estado em discussão nas últimas semanas, o certo é que Humberto Fraga foi visto, no início de Março, a entrar na Câmara Municipal de Odivelas na companhia do presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira. A NS’ tentou falar, sem sucesso, com a presidente da autarquia, a socialista Susana Amador, e questionou o vereador do Desporto, Hugo Martins, que respondeu: «Agradeço o contacto, mas sobre esse assunto não presto declarações.» Pela oposição, o vereador Ilídio Ferreira, da CDU, disse que «qualquer que seja a entidade séria que possa contribuir para salvar o clube é bem-vinda. Pode ser até que a proposta de pagamento da dívida por parte do Benfica se concretize». Aliás, adiantou, «parece que o Benfica ainda tem pagamentos a fazer ao Odivelas em resultado de compensações de atletas formados no clube».
A câmara é proprietária do terreno e uma das credoras do clube.

Saliente-se que a autarquia é um dos principais alvos dos comentários indignados de sócios do clube, como este assinado por José Nogueira: «É verdade que a câmara não tem culpa de o clube ter chegado a esta situação... Mas também não pode encolher os ombros e esconder-se atrás de argumentos políticos e esquecer um problema social da maior gravidade e que envolve um sector sensível da população e do município – a sua juventude. Para isso não basta palavras, são necessárias acções.»

A NS’ teve acesso à cópia de um e-mail enviado pela presidência da autarquia a todos os vereadores, no qual Susana Amador reconhece o importante papel do Odivelas Futebol Clube «na formação desportiva das camadas mais jovens da população, assumindo um relevante papel no universo do movimento associativo concelhio». Na mesma comunicação, a presidente do executivo afirma que «a câmara está legalmente impedida de apoiar financeiramente o clube, mas como é sabido tem prestado apoios materiais no transporte dos atletas». Não enjeita, porém, «a sua obrigação de encontrar uma solução que obvie o encerramento do clube».

Foi nesse âmbito, continua Susana Amador, que «teve lugar uma reunião com o presidente do Sport Lisboa e Benfica que mostrou interesse na utilização do recinto desportivo, o que poderá representar a realização das receitas necessárias à viabilização do OFC». Assim, «o município de Odivelas, através do seu mandatário forense, pondera a hipótese de contactar cada um dos credores para os sensibilizar para a vantagem de viabilizarem a recuperação do clube».

A SOLUÇÃO que neste momento se encontra em cima da mesa parece, contudo, não agradar a todos os sócios. Numa carta enviada por funcionários do clube a um autarca (de que a NS’ tem cópia), os signatários ameaçam chamar a Polícia Judiciária «para que se acabe com quaisquer dúvidas em relação à gestão». Na carta, com data de 5 de Maio de 2009, os trabalhadores/sócios acrescentam: «Após várias situações e atrasos, que no mínimo podemos chamar de estranhos, em relação à parte financeira, fomos confrontados por uma comunicação do administrador da insolvência, respondendo assim ao nosso pedido de pagamento de ordenados (...). Foi-nos dito que tal só sucederia se o Sr. Humberto Fraga justificasse o elevado saldo de caixa contabilista (quarenta mil euros) que fisicamente não existe.»

E terminam: «Temos os nossos compromissos para cumprir, apesar de todas as dificuldades, continuamos a levar por diante o clube (...). Pedimos ajuda, mas nunca com o Sr. Humberto Fraga no comando, pois isso seria o fim do clube.»

Contactado pela NS’, o administrador da insolvência, Florentino Matos Luís, confirmou que foi obrigado a tomar «uma medida drástica», afastando Humberto Fraga do clube, enquanto presidente da direcção, «pela sua recusa sistemática em prestar contas». Confirmou ainda que, há cerca de um ano, a EDP «detectou que já há alguns anos se consumia energia cujo pagamento não era feito». E o mesmo aconteceu com «os SMAS, que verificaram anomalias no fornecimento de água».

Enquanto relativamente à electricidade foi «feito um contrato que permite o pagamento da dívida em prestações», já no que respeita à água «tem valido a ajuda dos bombeiros e da câmara municipal». Caso contrário, o clube continuaria sem esses dois bens essenciais.

Florentino Luís Matos afirmou-se disponível para ajudar o Odivelas a sair desta situação «de doente ligado à máquina, mas a última palavra será sempre dos credores».

NAS BANCADAS deste jogo em que se esgrimem argumentos e acusações, há ainda quem especule sobre um eventual interesse da câmara em tornar o complexo desportivo do Odivelas Futebol Clube municipal. A ideia de que a câmara – proprietária dos terrenos cedidos ao clube em direito de superfície por um período de sessenta anos – possa estar interessada em municipalizar o empreendimento desportivo é, aliás, avançada pelo administrador da SAD. Luís Guilherme Baptista garante que «os sócios não estão contra essa possibilidade».

Os dados estão lançados e é opinião generalizada que o veredicto que vai definir a extinção ou não do Odivelas Futebol Clube está prestes a ser anunciado. Na última assembleia de credores, no dia 17 de Fevereiro, foram dados trinta dias para o clube colocar em cima da mesa uma solução. O prazo chegou ao fim, aguarda-se que o «árbitro» apite... Falta saber se para assinalar o início ou o final da partida.

Processo de insolvência

O Odivelas Futebol Clube foi declarado insolvente em 2006. Na origem do processo está uma dívida à empresa J. Silvino, contratada em 1992, quando da passagem do clube para o estádio Arnaldo Dias, para realizar a pesquisa e captação de águas para fornecimento do complexo desportivo. O resultado dos trabalhos não foi positivo, mas a dívida ficou e prolongou-se no tempo, tendo sido finalmente liquidada. Mas o processo de insolvência não acabou, porque existem mais credores.

A dívida ascende a cerca de duzentos mil euros, sendo metade desse valor reclamado pela Betoplano, propriedade de Humberto Fraga (último presidente eleito) e que também se encontra em processo de insolvência. Na lista de credores estão ainda a Playpiso, antigos funcionários, segurança social, finanças e câmara municipal. A este valor juntam-se as dívidas de água, gás e electricidade e alegadamente uma outra, que poderá chegar a quarenta mil euros, devida a um ex-dirigente.

O fim de um sonho

A antiga sede do Odivelas, numa estreita e velha rua da terra, é local de encontro dos sócios que acompanharam os primeiros passos do clube. A NS’ foi encontrá-los à volta da mesa, olhando de quando em vez para a televisão, e percorrendo os caminhos das memórias da colectividade. Aos sorrisos desencadeados pela lembrança das vitórias alcançadas e do esforço que todos fizeram para erguer o primeiro campo juntam-se, porém, os lamentos suscitados pela situação de insolvência que ameaça o clube. «Houve má gestão, não tenho dúvidas», sussurra José Pereira Norberto, de 70 anos, mas logo confessa: «Sempre trabalhei como pedreiro e ajudei a construir o estádio. Se o clube acabar vou ficar com o coração muito abalado.»

Este é um sentimento que pesa sobre a antiga sede, que ainda não fechou porque Abel Carvalho, sócio n.° 155, resolveu instalar-se atrás do balcão e pagar a luz e a água. Em troca ganha o que vai dando para pagar as despesas. «É um sítio onde as pessoas mais antigas se encontram, era pena fechar as portas», conta Abel Carvalho.

«Se acabar vou ter um grande desgosto»

A paixão que o levou a dedicar toda a vida ao Odivelas Futebol Clube é a mesma com que agora justifica o seu empenho na cobrança das quotas dos associados da colectividade que viu nascer. Quando chega a altura de bater às portas dos mais de dois mil sócios, José Carvalho, de 79 anos, sócio número um do Odivelas, percorre muitos quilómetros e sobe muitas escadas carregado com os recibos. Mas é um esforço que confessou à NS’ fazer com todo o gosto.

O que ganha – 35 euros mais uma percentagem sobre o valor das quotas – dá para juntar à reforma, mas não é nenhuma fortuna. Também não é isso que interessa a José Carvalho, membro da direcção «durante vinte anos». E conta: «Trabalhei toda a vida num talho e as horas vagas dedicava ao clube. Os meus familiares são todos sócios do Odivelas.» É assim com o clube «aconchegado» no peito que José Carvalho confessa, porém, a sua tristeza pelo estado a que chegou o Odivelas. «No princípio era tudo gente séria, ninguém ganhava nada, mas depois começaram a gastar mais dinheiro do que era preciso e é por isso que o clube está nesta situação. Se acabar vou ter um grande desgosto.»

Obra d’Os Gatinhos

Nos primórdios do Odivelas Futebol Clube está a ousadia e o arrojo dos 11 jovens que em 1939 – ano em que rebentou a Segunda Guerra Mundial – decidiram fundar o Odivelas Foot-ball «Os Gatinhos». Durante cerca de seis anos, os rapazes juntavam-se para jogar cartas e sonhar com um futuro risonho, no número 1 da Rua do Neto, uma casinha que conseguiram arrendar. Mas no mesmo ano em que a Europa festejou a vitória sobre as tropas de Hitler, «Os Gatinhos» encerraram a sua actividade.

O sonho, contudo, permaneceu, assim como a sede e, em Julho de 1945, foi criado o Odivelas Futebol Clube por Asdrúbal Abel dos Santos, António Neves (Tonica), Victor Manuel dos Santos e José Fernando Reis de Carvalho. Pela sede pagavam 25 escudos (12,5 cêntimos na moeda actual) mensais, valor que retiravam dos seus magros salários. Mas a entrada de mais 12 sócios reforçou a imaginação e depressa foi encontrada uma solução. Conseguiram duas mesas de matraquilhos no Parque Mayer, em Lisboa, que instalaram num jardim perto da sede.

Cada jogo custava dois tostões e no final do dia os sócios recolhiam as moedas. Para que as mesas não fossem roubadas, faziam turnos dormindo junto a elas. Quando chovia ou fazia muito frio, as mesas eram transportadas para a sede. Outra ideia brilhante saiu da cabeça do Tonica, que começou a comprar garrafões de ginjinha, no Largo de São Domingos, em Lisboa, e a servir «eduardinos».

Com o dinheiro dos matraquilhos e as receitas dos «eduardinos», o clube alugou botas, joelheiras e caneleiras no Arco do Cego. Ao fim de algum tempo, a Casa Sena, situada junto ao Tribunal da Boa Hora, entregou o equipamento preto e vermelho que muito orgulhou os sócios. De tal forma que pediram ao proprietário de um restaurante à entrada do Largo D. Dinis que colocasse na montra as camisolas e os calções para a população admirar e entusiasmar-se com o clube. E assim foi – até agora...

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