Balonismo. O fascínio de voar dentro do vento

Colocar Portugal na rota mundial dos balões de ar quente e honrar o papel do país na realização do sonho do homem de conquistar o ar são objetivos do Festival Internacional de balonismo, em Coruche
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"Uma vez tendo experimentado voar, caminharás pela terra sempre de olhos voltados para o céu, pois é para lá que desejas voltar." Atraído pelos segredos do voo, Leonardo da Vinci, um dos mais versáteis artistas de todos os tempos, projetou a sua máquina voadora há 530 anos. Não chegou a sentir os céus, mas soube retratar o fascínio vivido por quem " hoje" se aventura por eles, no mais antigo veículo aéreo de transporte da engenharia humana, o balão de ar quente, que já conta com um passado de três séculos, e para o qual Portugal teve um papel determinante. E é com o mesmo espírito ambicioso de Bartolomeu de Gusmão - que em 1709, perante o rei D. João V, fez subir, pela primeira vez, um globo de papel a quatro metros de altura - que a vila ribatejana de Coruche ofereceu os seus céus ao festival internacional de balonismo.

Desde terça-feira e até amanhã, 25 balões, em forma de moto de corrida, cavalo-marinho, gelados, bonecos ou o "simples" balão colorido, manobrados por pilotos profissionais de vários países, têm preenchido o imaginário de milhares de pessoas. E se muitas ficaram pela contemplação do espetáculo, outras tantas tiveram a oportunidade de voar dentro do vento, em harmonia com os elementos que regem a natureza.

"Voar de balão é a sintonia perfeita entre ar, terra e fogo. Só a água fica de fora, ainda que muitas vezes presente na paisagem", comentava Ana Sofia, que, depois da experiência em Coruche, passou a contabilizar três viagens "nestes veículos fascinantes" que a "transportam para as aventuras de Júlio Verne". E é este "lado primitivo" do balonismo - considerado o precursor da aviação mundial - que mais atrai Ana Sofia.

Num balão, levados pelo vento, controlando a direção suavemente no sentido ascendente e descendente, tem-se a possibilidade de observar os campos, montes, rios e animais numa perspetiva totalmente diferente da que é proporcionada por todos os outros meios aéreos. A tranquilidade é total e o silêncio só quebrado pelos potentes queimadores de gás que mantém o balão no ar.

A sensação de movimento praticamente não existe e só é percetível à medida que o balão se afasta do chão. A partir daí manda a "serenidade", observa Guido dos Santos, o piloto responsável pelos voos do festival, organizado pela Windpassenger, uma empresa portuguesa com mais de 30 anos de experiência na prática do balonismo, que permitiu ao DN compreender a reflexão de Da Vinci, depois da viagem de cerca de uma hora no balão verde em forma de garrafa de gás.

Nascido na Holanda e a viver em Portugal desde a adolescência, Guido herdou a "paixão"pelo balonismo do pai, Carlos Santos, o primeiro piloto com um balão registado em Portugal (1987). Fez o primeiro voo sozinho com apenas 16 anos, e agora, com 40 anos já conta com mais de 2400 horas a "viajar dentro do vento"- como faz questão de reforçar - e sempre de forma tranquila. " Isto é muito seguro, nunca tive qualquer problema. Mas é necessário conhecer os limites, ultrapassá-los é sinónimo de risco e quando vou com passageiros nunca o faço", comenta Guido. Das muitas histórias das suas viagens há uma que gosta especialmente de contar, ocorrida quando voava com o pai, nos anos 1980, altura em que o balonismo em Portugal era praticamente desconhecido. " Estávamos a chegar perto de um terreno para aterrar e havia uma senhora a cultivar, com enxada na mão. Quando nos viu desatou a correr e a gritar: "Fujam, fujam. Eles [extraterrestres] vêm-me buscar.""

A aterragem é feita num terreno, normalmente de terra batida, escolhido no momento pelo piloto algures na direção do vento e num campo com acessos. A chegada à terra tem de acontecer no máximo 20 minutos após o pôr do Sol para haver condições para a equipa de apoio fazer o resgate (o voo do DN terminou num campo pelado de futebol da Erra, presenciado por dois habitantes da aldeia e por uma manada de vacas que, assustadas, fugiram).

O processo de esvaziamento do balão - 2600 metros cúbicos de ar, quantidade de ar que se for traduzido em água daria para encher três piscinas de competição de 25 metros -, o carregar dos equipamentos para o atrelado e carro de apoio é feito por três a quatro pessoas e demora perto de uma hora. Quase tanto como o "ritual" da partida, onde é necessário estender as velas dos balões, encher com ar até ganharem forma, testar os queimadores, equipar os cestos com as enormes botijas de gás (variam entre os 160 litros e os 360, consoante o tamanho do veículo) e por fim aquecer o ar no interior das velas para que o balão comece a subir. "É um processo trabalhoso mas compensado com o tempo que passamos lá em cima", comenta Guido, que repete todos estes movimentos duas vezes por dia, já que os voos no festival fazem-se às 07.30 e 17.30, quando o vento o permite.

Esta primeira edição demorou três meses a ser preparada e contou com um orçamento na ordem dos 55 mil euros, só possível com o apoio dos patrocinadores e da Câmara de Coruche. "Lucro não terá com certeza, mas este ano o objetivo é, sobretudo, divulgar o evento, quer entre o público quer entre os pilotos estrangeiros. Gostaria de dentro de quatro anos ter aqui uns 100 balões", diz Guido.

Mas o sonho maior do holandês é mesmo o de ver o país onde Bartolomeu de Gusmão exibiu o seu "instrumento de voar," tornar-se um local de referência do balonismo. Em Portugal, há 28 pilotos com licença, mas apenas oito no ativo e uns três a viver dos balões. Na Holanda, por exemplo, há uns 1500 pilotos. Situação que também está relacionada com os elevados custos desta atividade.

Uma paixão cara

O balão Babette é a coqueluche de Harle, o piloto e um dos donos da GH-Ballooning, empresa holandesa que promove passeios de balão. E, embora seja um negócio, Harle e a mulher, Tineke Bardewee, têm outra profissão para usufruírem deste "prazer". Trabalham num hospital, ele na gestão e ela na farmácia.

Foram convidados a participar no festival e são a segunda equipa holandesa em exibição. Normalmente têm de pagar a inscrição (em Coruche foi de 385 euros só aplicada aos balões com formato normal), a que juntam os gastos com as deslocações, alojamento e refeições. "Saímos da Holanda no sábado [dia 18] e regressamos domingo para chegar a casa na quinta-feira, bem a tempo de trabalhar na sexta. São as nossas férias. Tudo para ver os balões no ar, que é o que me dá mais prazer", conta Tineke Bardewee, de 51 anos. A Babette, com cesto para cinco pessoas, foi construída em 2013 e é um dos maiores balões que sobrevoa nestes dias Coruche.

O balonismo está associado a contas elevadas e ao alcance de poucos. Um balão no mínimo custa 30 mil euros; o atrelado para o transportar uns 8 mil, um jipe todo-o-terreno, entre 30 a 40 mil euros; a inspeção obrigatória após 100 horas de voo mais de 500 euros; o trabalho da equipa de apoio, perto de 120 euros por voo; o seguro - Guido paga 10 300 por sete balões. Harle já fez as contas aos custos da sua Babette, são 100 mil euros de investimento por cada balão. Mas para quem pode, cada euro gasto vale a pena para estar tão perto do céu, voando ao sabor do vento.

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