O metabolismo próprio das redes sociais costuma ser demasiado acelerado para formar memórias rigorosas e duradouras, mas de vez em quando surge um evento capaz de fixar indelevelmente uma data. Tal como se lembram dos dias gloriosos do "covfefe" de Trump ou daquele controverso vestido de cor indeterminada, um número significativo de utilizadores do Twitter recorda o que estava a fazer na madrugada de 28 de Abril de 2017: a acompanhar em directo uma sumptuosa calamidade tropical chamada Fyre Festival..O evento, concebido pelo rapper Ja Rule e por Billy McFarland, um jovem empreendedor de Nova Jérsia, pretendia proporcionar a "experiência cultural da década": música, luxo e opulência, num cenário paradisíaco nas Bahamas. Algumas centenas de pessoas - que tinham pago entre 1500 e 50 mil dólares pelo bilhete - chegaram à ilha de Grande Exuma na expectativa de um fim-de-semana de exclusividade hedonista em luxuosas vivendas à beira-mar, a comer pratos gourmet preparados por chefs famosos, e na companhia de top models e estrelas do Instagram. O que encontraram foi um descampado lamacento, tendas ensopadas, matilhas de cães selvagens e trágicas fatias de queijo. Horas depois de aterrarem, descobriram que todas as bandas tinham cancelado a sua presença, que não havia electricidade, nem água potável, nem alojamento para todos, nem uma forma rápida de regressarem a casa. Enquanto tudo isto acontecia, e enquanto as baterias dos smartphones resistiram, foram fazendo tweets. E a "experiência" que não tiveram transformou-se na experiência de todos os que estavam de fora a assistir..O fiasco pode agora ser reavaliado através de dois documentários, lançados na mesma semana em duas plataformas concorrentes (Netflix e Hulu). Ambos contam mais ou menos a mesma história, com as mesmas etapas cronológicas: um crescendo de promessas extravagantes, amplificadas por uma ambiciosa campanha de marketing digital; uma abordagem dadaísta a questões orçamentais; trabalhadores desesperados a tentarem montar em doze semanas uma infraestrutura que normalmente levaria dezoito meses; e uma equipa logística a reprimir abnegadamente a gradual desconfiança de que estão a participar num desastre épico..Porque não morreu ninguém (como, aliás, salienta triunfantemente um dos elementos da organização, já na fase de contenção de danos), ambos os documentários dão também licença ao espectador para se render à procissão de elementos cómicos, que ocupam o espectro completo de depoimentos iludidos, justificações gaguejantes ou fogachos simplesmente bizarros - desde o piloto de avião que confessa ter aprendido a voar com o simulador da Microsoft ao funcionário da alfândega que esteve prestes a ser subornado com uma oferta de sexo oral..A curiosidade maior, que nenhum dos filmes consegue saciar, é sobre o cérebro da operação. McFarland é repetidamente descrito como "génio", "carismático" e "visionário", mas esses atributos nunca são visíveis, e fica a ideia de que a suposta personalidade magnética era uma função da vontade dos que o rodeavam, que se limitaram a interpretar como carisma a colecção parcial de circunstâncias que costuma ornamentar a mitologia dos empreendedores de sucesso (autoconfiança, falar muito depressa, desistir da faculdade, etc.). A única qualidade comprovada de McFarland é a sorte genética e social que lhe permitiu entrar nas salas de reuniões certas e marcar os números de telefone apropriados para ter acesso a financiamento, financiamento esse que depois foi servindo para validar retroactivamente o seu brilhantismo. As três horas de filmagens servem quase como uma redução ao absurdo do culto da startup "genial", em que a capacidade para idealizar e administrar um projecto é subordinada à capacidade de descrever uma ideia absurda em contextos pré-condicionados para o absurdo ser levado a sério, com cheques ao portador..O documentário da Netflix acaba por ser melhor do que o da Hulu, em parte por um maior rigor na organização do material e em parte porque este último reverte demasiadas vezes à sociologia de algibeira, procurando indexar tudo a abstracções vaporosas. Os primeiros vinte minutos são especialmente fatigantes, repletos de observações superficiais sobre os millennials e a sua vulnerabilidade a ilusões, como se cada década não tivesse as suas ansiedades de estatuto, ou como se a susceptibilidade a fraudes fosse uma característica geracional (as vítimas de Bernie Madoff que o digam); ou como se, já agora, cinco mil pessoas capazes de pagar milhares de dólares por um fim-de-semana de luxo nas Bahamas fossem representativas de uma classe demográfica tão vasta..As mesmas tecnologias digitais que artilharam ex nihilo uma fantasia impraticável foram as mesmas que assinaram a sua certidão de óbito. A campanha promocional que começara como uma série de enigmáticas fotografias cor de laranja colocadas no Instagram teve o seu contraponto na infame foto da sanduíche de queijo, tweetada por alguém com 400 seguidores, mas que ao fim de poucas horas foi partilhada milhares de vezes, e impulsionou o frenesim mediático..A distopia em curso numa ilha tropical e a forma como as centenas de festivaleiros frustrados reagiram ao que encontraram (açambarcando colchões e rolos de papel higiénico, sabotando tendas vizinhas para "não terem ninguém por perto") levaram, naquela memorável noite no Twitter, a muitas comparações com O Senhor das Moscas, mas uma analogia literária mais apta para todo o fenómeno é J. G. Ballard, que actualizou a fábula de Golding num livro de 1975 chamado High-Rise, transpondo a acção para um arranha-céus luxuoso e exclusivo..Golding deduziu correctamente que perante um súbito falhanço sistémico a humanidade reverte a atavismos e impulsos primordiais; Ballard mostrou que o inverso também é verdade: quando se vive demasiado tempo sem que nenhum dos nossos impulsos tenha consequências, como aconteceu a Billy McFarland, a queda será aparatosa e fará danos colaterais..Escreve de acordo com a antiga ortografia