Axilas: este obscuro objeto do desejo
"A axila da mulher tem uma beleza misteriosamente inefável que nenhuma outra parte do corpo feminino possui. A axila, além de atraente, é poética." A partir daqui, a descrição literária vai progredindo cada vez menos pudica... Na leitura destas frases espirituosas, recolhidas de um conto do escritor brasileiro Rubem Fonseca, Lázaro de Jesus (Pedro Lacerda) descobre a voluptuosa essência feminina. Nasce uma obsessão. O conto chama-se, sem surpresa, Axilas, e inspirou o filme homónimo de José Fonseca e Costa, produzido por Paulo Branco e terminado pelo montador Paulo Mil Homens, que chega amanhã às salas. Este é o derradeiro título do cineasta que morreu em novembro passado, numa filmografia composta, assim, por onze longas-metragens. Poucas para quem viveu 82 anos, e tantos deles sem poder filmar.
Corrosivo, como o autor a quem tão adequadamente foi buscar iluminação, Fonseca e Costa (no argumento, com Mário Botequilha) deixa-nos um trabalho de dupla tonalidade: a base é a comédia, aliás, de expressão bem portuguesa, mas obriga-se a carregar consigo, tal como existem na história contada no livro, os elementos da tragédia. Pedro Lacerda, suportando as dores melancólicas do protagonista, imerso no mofo religioso da sua abastada avó adotiva (uma tremenda Elisa Lisboa), não poderia oferecer melhor constituição - até física - ao protagonista, Lázaro de Jesus. Eis um ambiente narrativo que permitiu a Fonseca e Costa espraiar-se no anticlericalismo que foi marca forte ao longo da sua obra, e que era bem conhecido daqueles que lhe foram próximos. Há um padre (Fernando Ferrão), uma catequista (Margarida Marinho) e uma madre superiora (Paula Guedes), todos eles peças fundamentais no avolumar do escárnio em torno de um homem que não pediu o nome que lhe deram, essa "graça de Deus", como a certa altura se diz.
Lázaro de Jesus, de oca devoção, é alguém que, por força das várias confissões semanais - com um custo de cinco atos de contrição e uma nota de 20 euros - e da escrupulosa educação religiosa transmitida e vigiada pela avó, com quem vive, não cultiva mais do que o pensamento dirigido aos mistérios da sexualidade. Mulheres, em suma. Mas um dia, sem aviso, a porta abre-se, literalmente. Lázaro encontra a chave que lhe dá acesso ao interdito, e por isso cobiçado, escritório do seu avô, uma divisão da casa assinalada pela perversão que encerra. Dir-se-á que a vida deste pobre homem começa aí.
O estudo do corpo feminino, em todo o tipo de esplendor artístico (desde o famoso quadro de Courbet, A Origem do Mundo, ao excerto do conto de Rubem Fonseca com que começámos), leva-o ao cerne do deslumbramento: as axilas. Maria Pia (Maria da Rocha), uma violinista da Orquestra Gulbenkian, converte-se no alvo exclusivo dessa caça instintiva às mais belas axilas, apanhada na execução de uma peça de Tchaikovsky, que deixa vislumbrar a cavidade apetecida.
Entre a erudição e o vocabulário mais castiço das personagens, inscritas na paisagem das ruas lisboetas, o último filme de Fonseca e Costa é também uma evidente homenagem à cidade onde viveu desde 1945. Percorrem-se as travessas e os grandes centros (Rossio, Avenida da Liberdade, Restauradores...), passando pelas principais instituições culturais (Gulbenkian e Centro Cultural de Belém). É também desse contraste social que se faz Axilas, olhando, sempre com diversão, os peculiares malandros da cidade querida.