Austrália e Google em luta e a UE à espera de ver para que lado cai a fruta*

*As sempre prontas a intervir e regular autoridades europeias têm estado em silêncio enquanto o governo australiano confronta Google e Facebook numa causa que, pelo menos desde 2019, é uma causa europeia.
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Há mais de um mês que a Google está em guerra com a Austrália. O caso começou com o anúncio do governo australiano de que iria aprovar uma lei, inédita no mundo pelo seu alcance, que obrigaria os gigantes da internet -- Google, Facebook e outros -- a pagarem às empresas de media pelos conteúdos noticiosos.

Mal os planos foram revelados todas as empresas abrangidas (que são americanas de origem) vieram a público afirmar ser impossível concretizá-lo invocando, entre outras, razões técnicas. Mas rapidamente o conflito exacerbou-se com a Google. Ao ponto de, na semana passada, o maior motor de busca do mundo ter simplesmente ameaçado sair da Austrália.

A acontecer, seria uma decisão inédita. A Google não funciona em países tecnicamente isolados, como a Coreia do Norte, ou estados policiais, como a China comunista, mas de resto quase é sinónimo de internet para a grande maioria das pessoas que vivem no mundo livre.

O braço de ferro continuou ao longo da semana, com o ministro das Finanças, Josh Frydenberg, a garantir ser "inevitável" que a Google e as outras empresas venham a pagar pelo uso das notícias. Não disse, no entanto, como pretende fazer cumprir essas novas regras.

Certo é que a guerra está longe do fim. O caso é bem diferente daquilo que aconteceu em Espanha em 2014, quando por causa de uma lei parecida -- mas bem mais suave -- o motor de busca eliminou o serviço Notícias (o Google News), o que na prática nem teve grandes efeitos no tráfego.

Aqui, a ideia é muito simplesmente deixar de haver Google naquele país onde (tal como acontece quase no resto do mundo), 90% das pesquisas em desktop e 98% em mobile são feitos pela página dos dois oo.

E é também através do Google, tal como noticiou no início desta semana a ABC, que 3,54 mil milhões de euros em negócio foram gerados só em publicidade online. Assim, uma eventual retirada da empresa iria ter efeitos gigantescos nos negócios australianos.

"While switching search engines is likely to be an inconvenience, [os especialistas] Dr Barnet and Mr Lewis agree the most profound impacts will be the flow-on effects on Australian businesses.

"The digital advertising market for Google search in Australia is worth about $4.3 billion per year," Dr Barnet says.

Além disso, ainda segundo o mesmo artigo, a Google hoje em dia vale nada menos do que 51% de todo o mercado publicitário online.

Mas deixemos os valores monetários de lado -- apesar de ser um péssimo hábito.

Sem Google, os australianos simplesmente serão privados do melhor motor de busca que a internet tem, quer se queira quer não.

Há anos que a concorrência tenta descobrir o segredo desta "galinha dos ovos de ouro" e apesar de a Microsoft até conseguir bons resultados nos EUA com o Bing, é no mínimo medíocre lá fora. O DuckDuckGo e o Ask.com fornecem resultados aceitáveis, mas basta experimentar por uns dias para perceber que são bem menos eficazes.

Já para não falar da riqueza não contabilizada (nunca contabilizada) que estes serviços online valem para os estados. Sempre que pensa ir viajar para algum lado, onde procura informações, bilhetes, hotel? Não passa pelo Google ou pelo Facebook? Se calhar já esteve a ver fotos da Austrália -- e até planeia ir lá um dia. Ou já lá foi...

Voltemos a olhar para os números: 90% de pesquisas no desktop e 98% no mobile. Claro que o motor de busca Google está numa posição monopolista e, sim, essa questão deve ser discutida em tribunal -- e está a sê-lo, em força, nos EUA.

E sim, provavelmente a ameaça de sair da Austrália é bluff. Não é crível que a Google abdique dos tais 3,54 mil milhões de euros de negócio publicitário por causa de pagamentos aos media, sejam eles quais forem.

Mas há duas coisas muito irritantes em todo o processo.

Uma é a referida atitude do governo australiano perante as empresas. O Google, Facebook e companhia estão onde estão por mérito próprio. As pessoas usam-nos porque querem, porque gostam, porque sentem que os serviços que ali obtêm lhes são úteis. Quando o poder político trata as empresas que fornecem esses serviços como se fossem criminosas -- como é hábito, pelo menos na retórica, em países como Portugal --, o que na realidade estão a fazer é a tentar manter concentrado o status quo porque de facto estas plataformas têm um potencial disruptivo e imprevisível que o assusta.

Mesmo argumentos muitas vezes invocados de que estas empresas não são "democráticas" porque os seus dirigentes nunca foram eleitos caem por si, dado que, mais uma vez, cada utilizador tem liberdade plena de simplesmente deixar de as utilizar. Apesar de um pouco piores, existem de facto alternativas no mercado. Não existe maior escolha "democrática" do que uma enorme maioria usar o Google porque simplesmente este responde-lhe à primeira enquanto o outro só à terceira.

Sim, é inegável que os impostos atualmente cobrados a estes gigantes são desproporcionais, relativamente ao que o comum dos mortais paga, quando comparado com o que eles lucram. Mas tal como referi acima, há várias contas que ninguém quer fazer, como qual a riqueza para cada país, desde turismo a telecomunicações, por exemplo, que estes serviços proporcionam. Ou quais os montantes em investimento em mecenato que os mesmos fazem -- algum até em comunicação social, algum até em Portugal. Será pouco, dirão, mas não é abrindo guerras que se conseguirá mais. A negociação só é possível com boa-fé e confiança de ambas as partes.

A outra coisa a que chamei irritante - corrijo-me: é quase ridícula. A União Europeia tem desde 2019 uma diretiva sobre a utilização dos conteúdos dos media por agregadores que, apesar de ser bastante mais suave do que a proposta australiana, se assemelha a esta. Além de Espanha, também França já a transpôs para o seu ordenamento -- ainda que seja duvidoso como a norma está a ser cumprida.

De qualquer forma, a questão dos direitos de autor e da cobrança coerciva a estas empresas faz parte da agenda europeia há anos. Era expectável que a UE tivesse uma posição sobre este conflito. No entanto, até agora, o silêncio tem sido total.

A conclusão só pode ser uma: a Europa está (mais uma vez) a ver o que é que a coisa dá, qual necrófago pronto para recolher os despojos. O que, desculpem lá, não fica nada bem para quem se arroga de estar a defender grandes princípios.

Em cima fiz questão de referir que as empresas visadas são norte-americanas. Todas. Não existe uma única gigante da internet que não seja americana ou asiática (Alibaba, Tencent, Baidu). A Europa está totalmente fora deste campeonato. Se isto não o faz pensar um pouco, devia...

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