Uma subscrição pública para o corpo de Aurora

Nasceu "rapaz" - ou seja, com um pénis - há 27 anos numa aldeia do Norte. Mas sempre se sentiu rapariga. Agora, Aurora Pinho pede ajuda para pagar a cirurgia que transformará esse pénis numa vagina. Para poder finalmente, diz, "olhar ao espelho e reconhecer-me, abraçar-me sem ter um fantasma".
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"Seja cinco euros, dez, 15. O que for conveniente para vocês."

A preto-e-branco, muito loura, lábios cheios, olhos amendoados, a acariciar um gato para acalmar o nervosismo, Aurora fala connosco, estranhos, desconhecidos, curiosos, indiferentes, inimigos. Pede ajuda.

Reunir 7000 euros é o objetivo do crowdfunding anunciado neste vídeo que desde a madrugada de segunda está on line na plataforma onde divulga o seu trabalho artístico (é performer, dança, canta, compõe, pinta). A cinco euros, são 1400 pessoas; a dez, são 700; a 15, 467. Não é muita gente. Não é uma grande crowd nem um grande funding. Não é muito dinheiro por pessoa. É muito dinheiro para ela, artista como quase todos os artistas sem rendimento certo e de uma família "sem muitas posses" de Travanca (Santa Maria da Feira), uma "aldeia muito pequena" onde nasceu, com corpo de rapaz e nome de rapaz - Flávio -- há 27 anos.

Uma das avós ainda lhe chama assim. "É a memória. Primeiro diz Flávio e depois tenta chamar-me Aurora. Mas nunca me rejeitou." Faz silêncio. "Ter a minha avó de 80 e tal anos a perguntar o que é a transexualidade faz-me perceber que é possível mudar mentalidades. Faz-me perceber que vale a pena correr este risco."

O risco é "tornar isto público", esta "coisa privada, da minha vida pessoal." Assusta-a, admite. "Mas a única maneira de alcançar alguma coisa é fazer isto." Isto é aquilo a que se costuma dar o nome de "mudança de sexo", a CRS -- cirurgia de redesignação genital -- que culmina o processo que decidiu iniciar há dois anos e na qual o pénis desaparece e surge uma vagina. Mas "isto" é também o vídeo em que apela a desconhecidos para que contribuam para essa operação, já que não tem, diz, outra forma de a custear. E a ideia de que ao expor-se, ao chamar assim a atenção para as dificuldades de um processo como o seu, ajuda quem está e estará na mesma situação.

Em apoio ao seu vídeo -- que terá a companhia de outros, como aquele no qual o ator Manuel Moreira apela com ela e por ela à gentileza de estranhos - mais de cem pessoas, entre as quais as atrizes Rita Blanco, Joana Barrios e Cláudia Jardim, a cantora Gisela João e os músicos Moulinex e Primeira Dama, os artistas plásticos Vasco Araújo e Ana Vidigal, o ator, dramaturgo e encenador do Teatro Praga (projeto com o qual Aurora colabora) André Teodósio e o comentador e professor universitário Viriato Soromenho Marques juntaram as suas assinaturas.

"Já me senti uma aberração"

A ideia surgiu em junho, depois de se ter ido abaixo e de, conta, os amigos lhe terem "caído em cima." No bom sentido, claro: o de ajudar, de não a deixar ir, soçobrar. "Há muitas pessoas nesta situação que estão desesperadas, querem suicidar-se porque já não sabem o que são. Já me senti uma aberração e mesmo recentemente tenho dificuldade em aceitar o meu órgão genital."

Porque o processo clínico é longo e longo foi o caminho antes de chegar ao processo. "Desde os meus três anos que tinha conversas com a minha mãe a dizer que era uma menina. Mas ela não achou muita graça e barrou-me muito. E a primeira vez que pintei o cabelo, devia ter uns 13, bateu-me." Tem riso na voz a contar isto, como se a dor estivesse longe. Não foi fácil para ela nem para a família, mas a mãe e o pai evoluíram entretanto nas suas posições. Já o irmão, garante, sempre esteve do lado dela.

"Nunca achei que era um rapaz - sempre soube qual era o meu problema. Mas não tinha nenhuma força para agir. Sabia a verdade da minha vida mas não queria descobrir informação."

Durante muito tempo, não soube de associações nem ativistas. Não teve ninguém, nos anos da infância e da adolescência, para falar sobre o que sentia nem ajudá-la a perceber. Não soube de debates na TV, de reportagens, de notícias, de testemunhos. Era como se vivesse noutro planeta - um planeta longe do Portugal em que se travava a batalha pelos direitos dos homossexuais, em que se lutava por uma lei da identidade de género.

"Não fazia ideia de nada disso. Sempre barrei a TV. A minha pesquisa era muito pessoal e eu própria tinha medo de obter informação, porque se a obtivesse teria de tomar uma decisão." As referências, o apoio, vinham de longe. De David Bowie, por exemplo. "Adorava-o. Pensava: tanto tempo antes de mim ele fez isto tudo. Usava-o como escudo e alter ego - usava-o como se fosse ficção."

Em 2010, quando foi aprovada a lei que acabou com a interdição do casamento de pessoas do mesmo sexo, encontrou "um escape": "Assumi-me como homossexual para me poder relacionar com um homem. Sabia que não era, mas foi uma forma de me começar a afirmar. Fui a primeira pessoa naquela aldeia a assumir que era homossexual, fui bombardeada." Primeiro na aldeia, depois no liceu em Santa Maria da Feira: "Sofri de bullying, quer psicologicamente quer fisicamente - foi horrível." Nem quando foi para o Porto estudar dança, durante três anos, na escola profissional Balleteatro, as coisas melhoraram muito: "A rua do Porto não dava para arriscar. Mesmo andar de mão dada com um homem na rua era super violento."

"Um rapaz andrógino de saltos"

Mas, malgrado a violência e o medo, foi-se transformando "Passei a ser um rapaz super andrógino que usava saltos." Quando descobriu Judith Butler (filósofa feminista americana, autora de Problemas de Género - Feminismo e Subversão de Identidade, de 1990, que defende que quer a identidade de género quer a sexual são construções sociais e não "adquiridos biológicos"), aconteceu aquilo a que chama "o meu momento click ". "Apresentei nessa altura - 2012/2013 -- um trabalho em que estava toda nua de saltos, e brincava com o órgão genital."

O pénis como um corpo estranho no seu. Algo que não é dela, que não é ela, sendo. Esperava, diz, "que toda a gente me caísse em cima." Não caíram. Continuou por aí, no cruzamento entre arte e biografia. Em maio, no espaço da Rua das Gaivotas, já em Lisboa, fez Aurora de Areia, um objeto artístico descrito na Time Out como "performance-instalação-concerto-tudo-o-que-se-quiser-que-seja", "de uma intimidade profundamente perturbadora."

Mostrou fotos, diários, um vídeo no qual, ainda como Flávio, rapava o cabelo. Foi, disse à Time Out, "o momento de depressão máxima, com tentativas de suicídio e tudo o mais. Sabia qual era o problema, mas não sabia como fazer e como encarar as pessoas à minha volta, sentia que não tinha força para começar o processo de mudança de sexo e de disforia de género." Ao Público, assumiu o espetáculo como "o processo de construção, via público, da minha identidade. A forma mais eficaz de ser transparente com o mundo em relação ao facto de ser transexual."

Antes, em Heteroptera, performance com Vânia Rovisco, propunha "uma nova abordagem sobre a identidade do corpo", questionando a "heterossexualidade dada como regra". Citando Butler: "Não há nenhuma razão para dividir os corpos humanos em sexo masculino e sexo feminino, senão porque essa divisão serve as necessidades económicas da heterossexualidade e dá um verniz naturalista à instituição da heterossexualidade."

"O real prazer de uma mulher"

Paradoxo: se os corpos não se dividem, binariamente, entre feminino e masculino, de onde vem esse sentimento de nascer, de se saber desde tão criança com "o sexo errado"? Não é isso reforçar a ideia do binarismo e de uma "identidade natural"? Responde sem responder: "Há a ideia de que o corpo do homem é de uma forma e o da mulher é de outra forma - e que não se pode ficar entre os dois. Claro que no momento em que tenho esta verdade não me interessa meter-me em caixas."

Outra pergunta difícil (impossível?): o que determina que corpos nos atraem? "Sempre soube que era por rapazes que me sentia atraída. Mas tive uma namorada, aos 21 anos. Encontrei uma rapariga e olhava para ela e via o meu reflexo - e apaixonei-me pelo corpo dela. Durou bastante tempo - estivemos juntas três anos."

Mais uma: não receia que a alteração do órgão genital dificulte o prazer? "Isso acontece maioritariamente ao contrário, nas pessoas nascidas com um órgão feminino que o transformam em masculino. No nosso caso, de masculino para feminino, acaba por ser uma mutação. Não é problemático. Tenho a noção de que vou ter o real prazer de uma mulher."

Voltemos ao processo, então. Até agora, conta, gastou 2500 euros. Tratamentos hormonais que lhe suavizaram as linhas do rosto, a voz, consultas de psicologia e psiquiatria para obter o a diagnóstico de "disforia de género" - a condição de quem, nascendo com os caracteres distintivos de um género, se identifica com outro (ou com nenhum, ou com os dois ao mesmo tempo). São esses pareceres que têm de ser apresentados na Ordem dos Médicos, para que esta dê autorização para a realização da cirurgia. Seja no público ou no privado, sem a autorização da OM não pode ser operada em Portugal.

Decidiu não tentar sequer no público, por causa da enorme fila de espera, mas ainda assim "até a OM aprovar tenho de esperar. Não há um prazo. E com a idade que tenho estou saturada de esperar. Sonho com isto desde miúda. Quando sonhava tinha outro corpo e gostava muito de adormecer por isso."

Impacienta-se: "Podia ter começado este processo muito mais nova - quando comecei a abrir e a perceber o que é a transexualidade e a quantidade de trans que há no mundo. Ainda hoje não sei o que é a felicidade plena."

Alguém sabe? Parece não ouvir: "Acho que o momento mais feliz vai ser quando for operada - olhar ao espelho e reconhecer-me."

Assunção, ascensão, promessa de uma aurora. Medo por ela, por tanta esperança. Mas ouviu, afinal: "Pois, ninguém sabe o que é a felicidade. É um momento. O resto é sempre estar a cair. E a levantarmo-nos."

Às vezes sós, outras com uma mão de alguém. Desta vez, ela pede a nossa.

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