Aula prática de escravatura (em árabe)

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Aqui há uns anos, oito princesas de uma das mais poderosas famílias dos Emirados Árabes Unidos hospedaram-se num hotel de luxo em Bruxelas. Ocuparam um andar inteiro, pois traziam consigo alguma da sua prole, vários guardas e 23 mulheres, a maioria delas africanas, para as servirem no longo tempo em que ali iriam permanecer. Um dia uma dessas serviçais arranjou forma de contar o seu quotidiano à polícia belga. A subsequente investigação revelou que as ditas 23 mulheres eram obrigadas a trabalhar em condições próximas da escravidão. As princesas árabes tinham-lhes apreendido os passaportes e quase não as remuneravam pelo trabalho, que podia ser exigido a qualquer hora do dia ou da noite; forçavam algumas a dormir no chão, à porta dos seus quartos, para que as atendessem prontamente, enquanto as restantes ficavam ao monte numa única divisão; as 23 mulheres eram por vezes espancadas, comiam apenas o pouco que sobrava das refeições das senhoras e estavam proibidas de abandonar aquele piso do hotel, ou seja, estavam aprisionadas. A justiça belga tardou a julgar o caso mas há dias chegou, por fim, o veredicto: as princesas foram consideradas culpadas de tráfico de seres humanos e de terem sujeitado pessoas a tratamento degradante. O tribunal considerou-as moralmente responsáveis por uma forma de esclavagismo moderno, e condenou cada uma a uma multa pecuniária e a 15 meses de prisão com pena suspensa, para além de indemnizações às vítimas.

Esta história - que está longe de ser caso único - foi pouco comentada em Portugal. Dos jornais diários, julgo que só o DN a divulgou. A notícia suscitou a indignada reação de muitos leitores, mas, infelizmente, não ecoou junto daqueles que não costumam deixar passar em claro situações de discriminação ou maus-tratos a africanos, nem dos que se mobilizam para exigir a Portugal um pedido de desculpa pelo seu envolvimento em formas há muito desaparecidas de escravatura. Desta vez, tanto quanto posso avaliar pelo que me vai chegando, optaram por não se pronunciar. O que é pena, pois nunca é demais lembrar a quem lê que escravatura não é apenas a que foi praticada pelo homem branco em tempos idos e contexto colonial. É útil partir deste triste exemplo das princesas árabes para mostrar, como se fosse uma aula prática, que o estado de escravidão, o tráfico de seres humanos, o trabalho forçado, eram e continuam a ser problemas universais porque houve e há pessoas de todos os credos e cores que, tendo possibilidade, escravizam outras. Isso, que era verdade no passado, ainda o é, pois a escravatura continua a praticar-se em várias regiões do mundo, nomeadamente em países islâmicos. Foi, portanto, pena que os que se interessam pelo problema, seja qual for o ponto de vista - histórico, sociológico, político, humanitário -, não tivessem aproveitado a ocasião para lembrar às pessoas menos informadas ou mais desatentas que o antiescravismo e o antirracismo devem acender as luzes vermelhas em todas as situações de apropriação dos outros, de exploração extrema e discriminação, e não apenas quando se trata de condenar ações passadas (ou presentes) dos povos ocidentais.

Historiador e romancista

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