A PERGUNTA impõe-se: como é que uma banda do Alto Minho, sem empresário, consultores de imagem, padrinhos musicais ou sequer uma secretária chega ao top de vendas nacional de DVD, atingindo duas platinas e um ouro? «Nós temos alma, suamos e transpiramos. Sai-nos do corpo e da alma e as pessoas percebem isso», responde Augusto Canário, 49 anos, «um cantador ao desafio, um repentista que canta onde calha, sobre o que calhar»..Define a sua música como «popular tradicional, com perspectiva de modernidade, com muita batida e muito ritmo». Nunca lhe chamaram pimba e diz que não teria problemas com isso, mas crê que não lhe assenta bem o rótulo. «Quando as pessoas dizem pimba, estão a referir-se mais a comportamentos dos artistas e aos seus tiques. Para mim, o pimba é pouco autêntico.» Autênticas são as concertinas, a sua imagem de marca. «Ouve-se bem e é o instrumento que melhor se adequa para cantar ao desafio. Além disso, visualmente é muito apelativo», explica Canário..Com músicas como A Cantiga da Pombinha, A Mangueira do Canário ou Ela Aguenta Bem com Dois, nota-se que Canário gosta do trocadilho – mas com limites. «Gosto da brejeirice. Não gosto do insulto fácil e de cantar o palavrão. A arte de cantar ao desafio é o segundo sentido, a insinuação.» E revela alguns dos seus segredos: «É preciso conhecer as coisas banais do dia-a-dia, como a mecânica, os animais ou a lavoura, onde se descobrem inúmeros segundos sentidos. E, muito importante, há a perspicácia. Temos de ser verdadeiros caricaturistas, salientar os aspectos mais engraçados, mas sem achincalhar. Quanto mais trunfos uma pessoa tem, mais os joga, mas a verdadeira arte é saber a forma de os jogar.».É no palco que as boas bandas se sentem em casa e Augusto Canário & Amigos cumprem essa máxima. A maior parte dos seus concertos excedem as duas horas de duração e podem ir facilmente até às duas horas e meia. No mínimo, há 12 músicos em palco, a que se juntam, muitas vezes, quatro bailarinos. São concertos animados, à imagem do arraial minhoto, com temas de raiz popular e o cantar ao desafio. Em cima do palco dança-se e canta-se sem se poupar esforços e sem olhar às consequências. Uma vez, um dos tocadores de concertina – instrumento que pode pesar até nove quilos – foi directamente do palco para o hospital para ser operado à coluna..NOS CONCERTOS também há muita brincadeira e situações inesperadas. Falsas zangas e músicos que aparecem no meio público a cantar são já momentos habituais. «São brincadeiras que, independentemente de a música agradar mais ou menos, as pessoas adoram. Nunca sabem o que pode sair dali.».Essa terá sido uma das razões que fizeram do DVD É Uma Festa o sucesso de vendas que catapultou Canário e amigos para a fama e que é presença obrigatória em qualquer autocarro de romaria. Em 2006, Augusto Canário já tinha lançado cinco CD em edição de autor. Mas o músico queria mais e arriscou tudo. Em vez de lançar um DVD depois de atingida a fama, como é normal, decidiu lançar o DVD antes do reconhecimento. Esse foi o marco de viragem na sua carreira. «Bendito dinheiro que gastei», recorda..A partir daí, a história conta-se em poucas palavras. É Uma Festa caiu no gosto do público e atingiu o galardão de ouro. A editora Espacial interessou-se e contratou a banda. As vendas não param e Canário & Amigos também não. Nos três anos seguintes lançam mais dois CD e outros tantos DVD. No Verão passado deram centenas de concertos, chegando a tocar 56 dias seguidos. O ponto alto foi um concerto no jardim de Viana do Castelo onde tocaram para uma assistência de quarenta mil pessoas..Augusto Canário diz-se realizado e admite sinceramente que nunca pensou, «nem pouco mais ou menos», chegar a este patamar. «Quando me propuseram o concerto no multiusos em Guimarães desatei a rir, mas depois veio-me à cabeça aquela frase: quem nasceu lagartixa nunca há-de ser jacaré. Pois bem, nós não queremos ser jacarés muito grandes mas, pelo menos, gostaríamos de passar para um sardão ou um lagarto maior. E a verdade é que no dia 6 de Março conseguimos meter lá três mil pessoas.».O músico está orgulhoso do sucesso, mas afirma que não lhe subiu à cabeça. Além de continuar ligado à Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental (APPACDM) de Viana do Castelo, ainda anima casamentos, baptizados e festas de empresas. «O artista não pode esconder-se das pessoas, como fazem muitas dessas “vedetas”», explica. Nem de propósito, algumas estudantes do Politécnico de Viana reconheceram-no enquanto posava para a NS’ e, de imediato, pediram-lhe autógrafos enquanto punham a tocar no telemóvel as suas músicas, provando a autenticidade da devoção. A devoção é correspondida pelo artista..«Ter cem ou dez mil pessoas em frente ao palco… a adrenalina não será a mesma, mas o nosso respeito pelo público é. Não se pode facilitar», garante. Recorda um concerto em Viana onde houve um curto-circuito e lhe pediram para aguentar os espectadores enquanto desligavam e ligavam a electricidade. «Cantámos a Laurindinha a capella, com um coro de milhares de pessoas, durante cinco minutos. As pessoas viram que não havia nem pause nem playback. Foi um momento muito marcante. Isso só se tem com o respeito pela público e até algum receio dele.».COMO EM QUASE TODAS as histórias de sucesso, as imitações proliferaram, mas Canário não se incomoda e deixa andar. «Fui o primeiro a lançar um DVD de um concerto. Hoje, basta olhar para os escaparates das roulottes para ver que todos fazem DVD. Fui um dos primeiros a utilizar a designação Amigos, porque a formação às vezes variava e a amizade é muito importante para mim. Mais uma vez, hoje, é só amigos e amizade nas roulottes. Também anda por aí muita gente a imitar o que fazemos nos concertos… Eu não me importo. Só me dá vontade de continuar e fazer mais coisas para eles imitarem», diz, em jeito de provocação..Augusto Canário aprendeu a tocar viola aos 12 anos no seminário do Carmo e nunca mais abandonou a ligação à música. Depois do 25 de Abril foi expulso por ter ido ver o filme O Último Tango em Paris e pela sua irreverência. Uma irreverência que mantém a poucos dias de completar 50 anos de idade. O seu último CD chama-se Cantar a Doutrina ao Toque da Concertina e surgiu como reacção àqueles que não gostaram da tentativa do padre Fontes, de Vilar de Perdizes, de celebrar uma missa acompanhada à concertina. «Disseram que era um instrumento de bêbedos e pessoas de fraca formação. Eu senti-me na obrigação de dar a volta a isso», justifica. Falou com o pároco da sua terra, Vila Nova de Anha, que acedeu a comporem, em conjunto, uma missa à desgarrada sobre os temas da homilia. No CD reuniu alguns desses temas – «rigorosos e que obedecem ao formulário que o catecismo tem, mas numa linguagem popular» – feitos ao longo de uma década..O artista assegura que tem ideias para músicas e conceitos novos para «pelo menos dois ou três anos» e garante que vai «continuar a dar qualquer coisa às pessoas que as torne mais alegres». Revela que em Maio sairá um disco novo e tem planos de gravar um DVD, «talvez no Coliseu do Porto ou no multiusos de Guimarães», com uma banda de música, como a da Marinha, com a qual já tocou..Por último, Canário confessa dois desejos. «Quero que no aspecto profissional digam de mim “podes contar com ele, é de confiança e gente séria”. No plano pessoal, quero que se recordem de mim como se fala de dois ou três velhotes: que era uma festa. Modéstia à parte, acho que já conquistei o meu lugar.».A alcunha.O nome de baptismo é Augusto Oliveira Gonçalves, mas todos o conhecem por Canário. A explicação é simples e não tem que ver com o jeito para cantar. «O meu pai chamava-se Joaquim Gonçalves Canário, mas a minha mãe não gostava do nome e eu e os meus dois irmãos ficámos só Gonçalves. Eu acho piada ao apelido e adoptei-o como alcunha e nome artístico.».«Quem dança o vira não é parolo».Muito ligado às raízes da sua terra – participou activamente na candidatura do património galaico-minhoto à distinção pela UNESCO –, Canário sente-se orgulhoso por ver que a concertina renasceu, em parte, graças ao seu esforço. «Entre 1992 e 1993 criámos várias associações no Minho para, a partir daqui mas para todo o mundo, recuperar a tradição da concertina, numa altura em que chegou a temer-se pelo seu futuro.» Graças ao movimento e a um intenso intercâmbio cultural diz que «nunca houve tantos e tão bons tocadores e tantas e tão boas maneiras de tocar concertina como agora»..Queixa-se da mentalidade portuguesa, que «nunca soube valorizar a música e os instrumentos originais que temos e que prefere karaokes e imitações estrangeiras, em vez de dar valor aos poetas e músicos da nossa música popular». Irrita-o o menosprezo pelas nossas tradições: «Quem dança o vira não é parolo. Parolo é quem quer dançar e não sabe.».O que diz Canário.«Fomos tocar pela primeira vez à Feira de São Mateus, em Viseu, pela mão do Quim Barreiros. É verdade que roçamos um bocadinho o estilo dele, mas sem nunca estender o tapete, o Quim é um homem que sempre me deu uma mãozinha. Sempre que lhe perguntam por nós, diz bem e que é de apostar.».«Após ter apresentado na TV a música O Gato da Vizinha, recebi uma chamada do homem que escreveu o Nós Pimba para o Emanuel a dar-me os parabéns e a oferecer-me cantigas e letras. Se calhar vou aceitar a oferta porque ele tem uma maneira diferente de escrever.».«Fui ao Estádio da Luz ver o Benfica-Braga e apareceu um velhinho, de Aguiar da Beira, com uma concertina a cantar sozinho. Entrei na desgarrada devagarinho porque ele não tinha bagagem para mim, mas não deixei que isso fosse muito notório porque ele trouxe uma concertina para o meio de sessenta mil pessoas e isso merece respeito. Pedi muitos aplausos para ele.»