Atrasado, deslocado e à sombra da TV

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Quando Sei Lá foi publicado há 15 anos, Portugal vivia na ilusão consumista e despesista dos anos do pós-cavaquismo, da Expo "98 e do guterrismo impante. Tivesse o nosso cinema um mínimo que fosse de base industrial, e Sei Lá teria sido filmado nessa altura, cavalgando com oportunidade e pertinência a onda do seu enorme e contestado sucesso editorial. Mas só 15 anos depois, com a economia de rastos e o País de pantanas, reduzidos a pó a euforia irresponsável e o otimismo escancarado dessa época, e extinta a moda editorial que lançou, é que Sei Lá chega ao cinema, irremediavelmente atrasado e deslocado. O livro era como que O Sexo e a Cidade dos periféricos e remediados, mas mais gasoso, raso e imediatista na representação do universo e da psicologia feminina, e das relações entre homens e mulheres, e nem um realizador com o currículo, o talento e o domínio técnico de Joaquim Leitão consegue maquilhar ou escamotear esta realidade. No formato, nos diálogos, na caracterização das personagens, na interação dramática, no tratamento dos cenários, nas inverosimilhanças e nas interpretações, Sei Lá é um filme com aspeto e sabor a telenovela concentrada e enfiada à força na tela. Até os atores se comportam e falam como se estivessem numa "ficção audiovisual" de um qualquer prime time televisivo. Mesmo Lisboa, uma cidade que Joaquim Leitão soube captar como poucos realizadores e incorporar dinamicamente em filmes como Duma Vez por Todas, Uma Cidade Qualquer ou Uma Vida Normal, não passa aqui de um pano de fundo utilitário. Estará o cinema português que, com toda a legitimidade, se quer amigo do espectador e próspero na bilheteira, mainstream, profissional e popular, condenado à dependência da televisão mais inane, estandardizada e descartável?

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