Ateu atravessou África para dar um carro às freiras
Chamaram-lhe "maluco" quando andou a pedir informações sobre vistos e fronteiras entre Marrocos e a Guiné para partir numa viagem de carro... sozinho. E foi preciso um pouco de loucura para, naquele dia, partir de Alcanhões, em Santarém, rumo à Guiné, num Peugeot 309. Prometeu a si próprio que se o conseguisse entregaria a viatura a uma ordem religiosa. Não lhe quer chamar milagre ou acto de caridade, porque é ateu, mas conseguiu. E sem qualquer incidente.
"Não encontro explicação para a minha vontade de o fazer nem para ter corrido tão bem", conta ao DN Carlos Ferreira, 52 anos, no seu escritório perto de casa, em Alcanhões. Foi ali que, meses antes, começou a planear a viagem que deixaria todos os amigos incrédulos. "As minhas viagens começam sempre meses antes do dia da partida."
Contactou com várias pessoas para saber as dificuldades que iria encontrar na fronteira de cada um dos países. Foram precisos "alguns conhecimentos" para adquirir todos os vistos em Portugal. Mas nada o travou da aventura. "Já tinha feito o percurso de jipe com uns amigos. E sempre disse que um dia faria a viagem sozinho", recorda.
No dia em que um amigo lhe perguntou se queria um carro velho, mais concretamente um Peugeot 309, Carlos não hesitou. Desmontou algumas peças, substituiu outras e preparou-se para os cerca de cinco mil quilómetros de aventura. A mulher, Cecília, apoiou. Melhor, ajudou, meses antes, a juntar as conservas que o alimentariam. "Montei um oleado no chão e ia juntando as refeições. Tudo à conta porque não podia levar muita carga", diz.
Cecília, preocupada com uma dieta variada, deu-se ao trabalho de elaborar um livro de receitas. "Ensinava a fazer molho vinagrete para pôr na macedónia enlatada ou para misturá-la com salsicha", conta, sob a ressalva que, nesse aspecto, tem gostos diferentes do marido. "Gosto mais de entrar num avião rumo a um resort", sorri.
Carlos teve o cuidado de delegar num amigo a tarefa de acompanhar a viagem dia-a-dia. "Dava-lhe a informação todos os dias. Levava ainda referências dos aeroportos mais próximos, no caso do carro avariar e ter de fazer o restante trajecto de avião", conta. O resto ficou registado num livro de bordo que preparou cuidadosamente.
A aventura começou no dia 1 de Maio. Levantou-se, despediu-se da mulher ainda não havia Sol e rumou para o Sul de Espanha. Eram 07.00 e, mais do que o caminho que tinha pela frente, pensava como passaria no Senegal - onde os carros com mais de cinco anos não entram.
Nessa mesma noite, chuvosa, dormiria em Tânger, Marrocos. Recorda-se de, já instalado, ligar a televisão e ver a notícia sobre a morte de Ben Laden. Marrocos não seria provação. Há mais de dez anos que este é um destino de férias. "Comecei a levar o meu filho para aqui tinha ele 10 anos. Sempre de carrinha." O conhecimento da estrada permitiu--lhe desfrutar as paisagens de Agadir até Laayoune. Sempre que se sentia cansado, parava. "Estava disposto a levar o tempo que fosse necessário". O pior foi a seguir: a travessia da fronteira do Sara Ocidental. São quilómetros de areia sem nada à vista. Completamente só.
Valeu-lhe um peluche velho que trazia pendurado no espelho do carro. "Foi com a zebra que falei durante muitas horas", lembra, sorridente. Estava a poucos quilómetros da Mauritânia e a quase quatro dias de viagem, na chamada "terra de ninguém" - uma zona-tampão da ONU para prevenir confrontos entre marroquinos e mauritanos. Há minas no chão, destroços de carros que ousaram passar o trilho e acabaram numa explosão. Cenários que fizeram várias vítimas. Mas quando confrontado se sentiu medo, diz que não. Não sabe explicar como nem porquê.
Carlos entrou na Mauritânia partindo do princípio de que a polícia era "exigente e pouco simpática" para os de fora. Mas foi preparado. Numa caixa de cartão juntou T-shirts e canetas. Ainda comprou uma dúzia de relógios numa loja chinesa - material útil para negociar a entrada num qualquer país africano. Ali não foi preciso. Em pouco tempo, cobraram-lhe dez euros de alfândega do carro. Quando outros turistas estavam a pagar cem euros.
Chegou a um hotel de berma de estrada e fez logo amigos. "Não tenho dificuldades nenhumas com isso", sublinha. E o álbum de fotografias digitais da sua autoria confirma. É com os novos companheiros que bebe chá e vai às compras nos mercados locais. O carro ficou estacionado perto de uma frota automóvel considerável. É por ali que vão parar os carros roubados na Europa e traficados para África. Basta chegar à recepção do hotel e pedir a marca pretendida. Nesta altura, o número de chassis já está alterado.
Carlos tentou sempre não entrar em "terrenos movediços". Evitou ser olhado com desconfiança. "Não podemos ter qualquer preconceito. Cheguei a dormir ao pé do funcionário de uma bomba de gasolina que me disse para não seguir a viagem de noite porque estava muito cansado", refere. Pelo caminho foi deixando recordações, seja as T-shirts que angariou em Portugal, seja as canetas ou os isqueiros da loja chinesa.
Seguiu depois por Nouakchot e chegou, finalmente, à temida fronteira do Senegal. O país onde não deixam entrar carros com mais de cinco anos. Não sabe se passou despercebido, certo é que enquanto outros se preparavam para abandonar os carros na fronteira e alugar viaturas nacionais, ele seguia no seu Peugeot, sem qualquer problema. E com um visto nas mãos.
Na zona, a taxa de sinistralidade é brutal. Entre estradas de alcatrão com crateras, que o faziam preferir a terra batida, havia carros desfeitos e choques automóveis acabados de registar. "Um ramo na estrada é sinal de acidente. Não há triângulos de sinalização", avisa.
Em Mbour, perto de Dacar, conheceu a família com quem iria passar os próximos três dias. "Via-se que tinham algum dinheiro e que ajudavam as pessoas mais pobres", regista. No chão da sala da moradia comeu entre os homens. As mulheres tomam as refeições numa sala à parte. Não por terem um papel inferior, até porque são elas que cuidam dos negócios, mas porque a cultura assim o impõe. "Gosto de viver cada um destes momentos", desabafa. Sentiu-se em casa, embora esteja já a milhares de quilómetros.
De novo na estrada. Os conhecimentos que travou fizeram questão de lhe mostrar um caminho que permitia contornar a Gâmbia por Tambacunda sem sair do Senegal. Estava no limite do visto de três dias para estar no País.
Ao nono dia de viagem, acordou no hotel que seria o mais luxuoso por onde pernoitou. O quarto, uma pequena cabana de palha, estava mesmo em frente à piscina. As nuvens escuras no céu impediram-lhe de gozar os 20 euros que gastou na estada. Prosseguiu viagem.
Em Pirada, a fronteira, deparou--se com o primeiro guarda guineense. Tinha o seu nome, Carlos. "Foi uma festa, ficou todo contente e fui logo bem recebido." Mais um obstáculo passado sem dificuldade.
A primeira fotografia que tirou nas terras vermelhas da Guiné foi no porto de Buba, local idealizado pelos portugueses, enquanto colonizadores, e a meia hora da estância de caça onde iria passar os próximos dias. Neste momento, recorda, não tinha mais comida enlatada para aquecer no motor do carro. As latas que sobravam ficaram no Senegal, para os mais desfavorecidos.
Sem uma única avaria no carro, um pneu furado ou qualquer incidente ao longo de um percurso de mais de cinco mil quilómetros, Carlos chegou ao destino. Continuou a passar por "louco" entre os amigos que o esperavam. Mas o que fez no dia seguinte fez esquecer qualquer devaneio. Sentado na sala de convívio, pediu que chamassem as responsáveis pela Ordem das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras. "Podia ter vendido o carro a alguém, mas quis doá-lo a estas freiras, que fazem um trabalho extraordinário no local." Carlos desconhecia que estava prestes a entrar no dia 13 de Maio, o dia em que a Nossa Senhora de Fátima apareceu aos Pastorinhos. Desconhece sequer o milagre. Mas foi por "milagre" que as freiras gritaram assim que souberam que iriam receber um carro para ajudar nas suas funções. "As irmãs gritaram e pularam, até eu me emocionei, e considero-me uma pessoa dura."
Carlos, depois, ficou a saber que o único carro que as voluntárias tinham para transportar crianças e idosos doentes avariara dias antes.