Até que os ouvidos lhes doam

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Que haja, em média, 15 mil portugueses escutados por ano, como revela hoje a reportagem de Manuel Catarino neste jornal, poderá, à primeira vista, ser um número assustador. E para quem se lembra ainda, ou entre os que não viveram a ditadura mas têm consciência do que significava viver num país onde a privacidade era inexistente, é ainda mais aterrador. A PIDE, e a sua sucessora DGS, escutava não quem queria, mas quem podia. Privilégios e mordomias negados à polícia de investigação civil. Era a PIDE que gozava do privilégio da bisbilhotice sobre os inimigos, reais ou suspeitos, do regime. Privilégio que, de resto, lhe estava legalmente proibido mas fazia à mesma, como alertava sibilinamente a cláusula 9 do regulamento da prestação de serviço telefónico aos assinantes, alertando que "os TLP obrigam-se a tomar as providências ao seu alcance para assegurar e fazer respeitar o sigilo das conversações transmitidas pelas suas linhas e redes telefónicas, mas não assumem responsabilidade alguma pelo facto de, eventualmente, se frustrarem essas providências".

Como tudo nesse tempo, era um pouco artesanal e improvisado. Ter telefone em casa não seria já nos anos 70 do século passado um luxo, mas era ainda uma coisa de gente com possibilidades. Quem queria ou necessitava de telefonar estava limitado às cabines telefónicas de rua, ao telefone do café ou da mercearia da aldeia, ou, em caso de emergência, pedir a um vizinho mais abastado e previdente. Para vigiar os menos de nove milhões (incluindo crianças) que viviam em Portugal em 1974, a PIDE/DGS dispunha de um extraordinário (e moderno, tinham sido comprados recentemente lá fora, em França) arsenal de 45 equipamentos automáticos de gravação de escutas, que dispensavam e evitavam aquela súbita baixa de tensão na rede sempre que o bufo de serviço ligava a cavilha, intrometendo-se na linha, e que denunciava a quem estava atento ou aos mais desconfiados que estavam a ser escutados. Mas mesmo com essas inovações tecnológicas a capacidade de a PIDE/DGS escutar as conversas dos portugueses era, como o resto do país, pobrezinha. Segundo a Comissão de Inquérito às Escutas Telefónicas, a capacidade de a PIDE/DGS escutar às escondidas os portugueses atingia o extraordinário número de 56 telefones em Lisboa e de oito no Porto.

Há hoje quase 15 milhões de telemóveis em Portugal (14.906.434, para ser rigoroso, no ano passado). Falamos ao telefone com uma tagarelice que contraria aquela imagem do país sisudo e triste do antigamente. Se temos ou não alguma coisa interessante ou criminalmente inculpadora para dizer, fica ao critério de cada um, mas o facto é que, no ano passado, cada português falou 51 horas ao telemóvel. É uma média, claro, tem de se admitir que se há quem tenha sempre qualquer coisa para dizer, como o Prof. Marcelo, também há quem não tenha nada. E é um progresso. Em 1990 ainda os telemóveis eram poucos, cada um falava, em média, 21 horas por ano ao telefone.

Com o telemóvel tudo mudou. Quase triplicou. Hoje, o número de horas que os portugueses passam ao telefone por ano é de 510 milhões. 510.000.000. Para aqueles que têm alguma dificuldade com tantos milhões, incluindo ministros das Finanças e banqueiros, podem-se pôr as coisas de um modo mais simples. Há 510 milhões de horas, ainda havia mamutes a pastar no Alentejo e entre os nossos antepassados neandertais agitava-se um movimento político que urrava chega à invasão de homo sapiens, imigrantes ilegais que vinham ocupar as nossas cavernas e comer os nossos javalis.

Reduzidas assim às suas proporções, 15 mil escutados por ano num país de tagarelas nem é muito. Um pouco mais de esforço, por favor.

Diretor do Diário de Notícias

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