Até quando África ficará à mercê dos abutres?
"África parece um pedaço de carne
em que cada um vem debicar o seu pedaço."
Agostinho Neto
O que continua a passar-se em África, em matéria de relacionamento com o resto do mundo, confirma, na generalidade, as palavras de Agostinho Neto, que fui buscar ao baú da História recente para servirem de epígrafe do presente texto. Sim, o neocolonialismo existe, ao contrário do que afirmam alguns, confundindo as lutas internas justas (contra a má governação, a corrupção estrutural, a falta de democracia e outros males) com a desculpabilização dos vários imperialismos que se abateram e continuam a abater sobre o nosso continente e, eventualmente, a cooptação dos que assim pensam pelos referidos imperialismos.
Os atuais acontecimentos no Sahel, por exemplo, puseram a nu - como se tal fosse necessário! - a brutalidade das condições a que os países africanos tiveram de ceder para obterem a sua independência relativamente à França e contra as quais alguns países da região parecem estar agora a levantar-se. Em alguns casos, porém, a dominação de tipo neocolonial de que vários países africanos são vítimas por parte da França (o famigerado modelo "France-Afrique") poderá ser substituída por outra dominação do mesmo tipo, no caso dos EUA, uma vez que estes parecem ter desencadeado uma estratégia para desestabilizar os interesses franceses em África (um resultado recente dessa estratégia, afirmam alguns analistas, é o golpe de Estado no Gabão).
Na Zâmbia, por exemplo, onde os EUA instalaram recentemente uma base militar, parecem estar a ocorrer situações cujo acompanhamento é imperioso por todos os africanos, sobretudo da região central e austral. Um deles foi a entrega por Washington de quatro helicópteros de ataque Blackhawk às autoridades de Lusaca, na sequência de alegações do presidente Hakainde Hichilema de que poderá acontecer uma tentativa de golpe de Estado no referido país. Há receios, mesmo, de que a Zâmbia possa ser empurrada para um conflito com o Zimbabwe, sob o argumento de que os alegados conspiradores são apoiados por Harare.
Por tudo isso, há que seguir com atenção a atual visita do secretário da Defesa norte-americano, Lloyd J. Austin, ao Djibuti, Quénia e Angola, a qual termina na próxima quinta-feira, 28. Tendo em conta o passado histórico recente, a viagem de Lloyd ao último desses três países é a grande novidade da sua digressão africana. Segundo um comunicado do Pentágono, a visita do secretário americano a Luanda "estará focada na construção de relações mais fortes em matéria de Defesa e na exploração de avenidas para o incremento de relações militares entre os Estados Unidos e Angola".
De acordo com outras fontes, está também prevista a ida a Angola no próximo mês de novembro de uma delegação do Departamento de Agricultura norte-americano. Um agrónomo angolano, crítico habitual das estratégias oficiais para o setor, disse-me: "Essa delegação mete mais medo do que a do secretário de Defesa." Um economista e profundo conhecedor das relações internacionais, por seu turno, comentou: "Sim, África vai entrar na farra [leia-se: a atual disputa pelo controlo e domínio da ordem mundial, cujo cenário, obviamente não se esgota na Ucrânia]". Aparentemente, os EUA querem contribuir para a segurança alimentar dos países africanos, para baixar a inflação e assegurar a sua estabilidade social e política, em troca, previsivelmente, do apoio desses países aos seus desígnios no quadro dos conflitos globais em curso. Resta saber qual o conhecimento americano acerca da agricultura africana.
Tenho poucas ou nenhumas dúvidas de que as movimentações americanas em África são uma resposta à expansão económica da China na região e à presença do Grupo Militar Russo Wagner em alguns países do continente. De igual modo, e sem esquecer a vocação imperialista quer da China, quer da Rússia, nada nos garante também que outras potências emergentes que, presentemente, se querem relacionar com África não o façam movidos pelo espírito predador denunciado pelo primeiro presidente angolano. Por isso, a iniciativa da luta para estabelecer relações corretas entre o nosso continente e o resto do mundo deve, pois, ser africana, tal como os nossos povos se ergueram para combater pela independência, no final dos Anos 50 do século passado.
Como cidadão africano, defendo que o caminho do nosso continente deve ser o de manter a sua independência e neutralidade, tal como defendido pelos nossos pais-fundadores. Terminada a Guerra Fria e o mundo bipolar que ela suportava, não me parece recomendável que África faça parte de qualquer mundo unipolar, onde a sua subalternidade seria ainda mais acentuada, limitando-se, quiçá, a receber algumas migalhas. Os nossos países precisam de se integrar, como uma força conjunta e articulada, nos atuais movimentos e processos tendentes a estabelecer uma nova ordem mundial assente no multilateralismo, para não depender de nenhuma potência, seja ela qual for.
A minha dúvida é se temos líderes à altura desses desafios.
Escritor e jornalista angolano