Até o Charlie já não dá o nome aos bois
Charlie Hebdo fez este título: "Um ano depois - o assassino continua à solta." De facto, assim é. Já que não falamos "dos assassinos", os que premiram o gatilho, mas dum singular "o assassino", alguém que representa a culpa, sim, esse, continua a solta. Mas o título é ilustrado por um desenho estranho: na capa, o assassino tem barbas e vestes brancas, como o velho Padre Eterno de Guerra Junqueiro, e leva o Olho da Providência dentro de um triângulo. Quer dizer, é o Deus da Igreja Católica e é o Grande Arquiteto do Universo com o símbolo dos maçónicos. Capa anacrónica! No séc. XVIII, Mozart pôs esses dois conceitos de Deus, o de Roma e o da Razão, a combater-se na sua ópera A Flauta Mágica. Mas é algum desses, o deus da maçonaria ou o do papa Francisco, o assassino inspirador das mortes de Paris, em janeiro de 2015? Poderá dizer: todo Deus mata. E é verdade, há muita História a prová-lo. Mas que sentido faz, neste caso, ser vago e injusto na acusação? Não foram todas religiões que entraram na redação do Charlie com kalashnikovs e saíram dela com as vestes em sangue. Foi em nome duma certa e determinada. Abusando da imensa maioria de gente dessa religião, é verdade, mas em nome dessa, certa e determinada. É legítimo o jornal ser antirreligioso, mas por que lança falsas pistas? Em janeiro de 2015, o atentado de Paris foi cometido por islâmicos radicais. É sintomático, e terrível, que até o Charlie Hebdo se tenha tornado cobarde.