Associação alerta que já há fome no bairro da Bela Vista
"Estamos muito aflitos, porque as pessoas não têm o que comer. Quem nos pode ajudar agora? É urgente." O alerta parte em tom de desespero da presidente do Centro Cultural Africano (CCA), Carla Jeanne, numa altura em que cerca de cem pessoas, distribuídas por 25 famílias no bairro da Bela Vista (Setúbal), perderam o apoio alimentar que vinha sendo prestado desde 2011 pelo CCA, que trabalha com várias comunidades do bairro. Pelo menos três dos restaurantes que diariamente forneciam comida, doando os excedentes, faliram nos últimos meses.
Foram os recentes desmaios de uma voluntária do CCA, cujas análises feitas no hospital de Setúbal permitiram aos médicos diagnosticarem "subnutrição", que levaram Carla Jeanne a denunciar "vários casos de fome" em famílias do bairro.
"Quando percebi o que se passava com ela fiquei apavorada. Era 19.00 horas e tinha comido uma sandes. A nossa voluntária recebe 430 euros, mas tem uma família de seis pessoas. Mal dá para as crianças", insiste, revelando que o levantamento feito entre as 25 famílias que eram apoiadas pelo centro com comida já ganhou contornos "assustadores em algumas casas", classifica a dirigente, alegando existirem situações em que "nem uma sopa está assegurada".
A mesma dirigente recorda ter criado esta estrutura de apoio, com ajuda dos restaurantes situados nas imediações do bairro, em 2011, quando o então ministro da Solidariedade, Trabalho e da Segurança Social, Pedro Mota Soares, alertou que vinham por aí dias difíceis e que seria preciso estar preparada para situações de pobreza.
Mas a austeridade "foi longe demais", diz, revelando que só um dos restaurantes que faliu oferecia 20 litros de sopa todos os dias. "Hoje temos situações de pobreza extrema a que ainda não tínhamos assistido aqui", lamenta, alertando para o recente agravamento da crise das famílias com o fim dos cursos de formação para onde o CCA tinha encaminhado alguns moradores. "Sempre ganham mais 80 euros por mês - 4,25 euros por dia de subsídio de refeição - o que era uma ajudinha".
O Instituto de Emprego e Formação Profissional já fez saber que só em janeiro deverão retomar os cursos. "E até lá o que é que eu faço?", questiona, admitindo, ainda assim, que a situação só não é mais grave porque as crianças garantem, pelo menos, uma refeição quente na escola, enquanto os pais estão a tentar inscrever-se noutras associações para tentarem ter acesso a apoio social.
"Mas não é nada fácil", como avança Maria, uma das utentes do CCA, revelando que na semana passada deixou o nome na lista de outra instituição, apenas por descargo de consciência. "Disseram-me que há pessoas à espera há um ano. Não tenho hipótese nenhuma", lamenta esta mulher, com um agregado familiar de cinco pessoas - duas crianças - que já vai vivendo da solidariedade dos vizinhos. "Recebo 400 euros, mas 150 são para pagar a casa. Vou fazendo sopas e comprando conservas, porque nem luz posso gastar para ter o frigorífico ligado", refere.
O CCA tem procurado apostar no "empreendedorismo social", levando os moradores a fazer alguns trabalhos manuais, como bordados, para vender ao público, mas sem sucesso. "Podia ser uma ajuda, mas se ninguém vem ao bairro, não conseguimos arranjar compradores", resume Carla Jeanne.