Assobios esperam Coentrão na Luz. Como irá reagir?
Desde julho que Fábio Coentrão sabe o que o espera no dérbi de quarta-feira, no Estádio da Luz. Assim que assinou o contrato de empréstimo do Real Madrid ao Sporting, afirmou que já tinha vestido "muitas camisolas", mas que "sempre" foi "feito de Sporting", o que motivou a imediata reação da claque benfiquista No Name Boys através do Instagram: "Não esquecemos o que fizeste por nós, mas os assobios na Luz esperam por ti. Ninguém beija o Manto Sagrado e depois vai representar merda. Rumo ao penta! Não é por terem treinadores/jogadores campeões que vai fazer de vocês um."
Na mesma publicação - que mereceu o like de Renato Sanches -, o grupo de apoio aos encarnados recordou uma fotografia do internacional português a beijar o emblema da águia e declarações apaixonadas do jogador, como "Benfica é o melhor clube do mundo" e "assinava já um contrato vitalício", aquando da passagem dele pela Luz, entre 2007 e 2011. Também na memória dos adeptos benfiquistas estava (e está) a promessa feita no verão de há dois anos: "Contrariando rumores de que irei jogar no Sporting, e apesar do respeito que tenho pelos clubes portugueses, em Portugal só jogo no Benfica."
A traição, como muitos lhe chamam, não passou ao lado dos verdadeiros protagonistas, os futebolistas. Através do Twitter, Salvio picou o antigo companheiro, dizendo que jamais trocaria o Benfica por um dos rivais. "Por isso é que temos de valorizar pessoas como Luisão, Jardel, André Almeida, Lisandro, Fejsa e muitos mais", acrescentou o argentino, colocando água na fervura.
Agora, seis meses depois de ter chegado a Alvalade e cinco anos após ter deixado os encarnados para assinar pelo Real Madrid, o lateral esquerdo volta à Luz, desta vez para ser vaiado num palco onde tantas vezes foi aplaudido. Poderá ficar afetado? "Claro que sim", diz ao DN Jorge Silvério, especialista em psicologia do desporto. "Ter um estádio cheio a assobiar sempre que se toca na bola pode influenciar o rendimento desportivo", acrescenta, ainda que salvaguardando o facto de o futebolista de 29 anos já estar habituado a ambientes adversos. "Estamos a falar de um jogador experiente, que já desenvolveu estratégias para superar os assobios. O facto de ser esperada uma reação hostil já o ajuda a preparar-se", vincou.
Raiva ou controlo?
Por outro lado, o especialista admite que as vaias podem servir para galvanizar o jogador, algo que muitas vezes acontece com Cristiano Ronaldo, que ao serviço do Real Madrid e da seleção nacional é correntemente visado pelos adeptos adversários: "Uma das estratégias é usar os assobios para ter mais energia para provar às pessoas que não deviam assobiá-lo. É uma espécie de raiva positiva."
Contudo, "raiva positiva" pode traduzir-se em algum desequilíbrio emocional, ainda que seja por galvanização e não por retração, o que não é aconselhável a um defesa, que tem a responsabilidade de ser uma das últimas barreiras da equipa oponente no caminho para o golo e de estar focado em aspetos como a linha de fora de jogo ou ao jogador que está a marcar. "Tem de haver controlo. Se não tivermos controlo sobre as emoções, a concentração pode ser afetada. É isso que quer quem assobia. Fábio Coentrão terá de encontrar equilíbrio e, até pela posição que ocupa, terá de ser ponderado", afirma Jorge Silvério.
No entanto, se existe a possibilidade de os assobios afetarem positiva ou negativamente o lateral esquerdo leonino, "não é impossível" que o internacional português se consiga abstrair por completo do inferno da Luz, acredita o psicólogo desportivo: "Há jogadores que conseguem alhear-se completamente do meio que os rodeia e que, nas entrevistas após os jogos, até dizem que não se aperceberam do ambiente, tal o foco com que estavam no jogo. Essa pode ser uma forma de lidar com ambientes adversos."
Recordações podem pesar
Ao contrário do caso de Ronaldo, assobiado pelos campos desse mundo fora pelo mediatismo e qualidade, Fábio Coentrão será vaiado por adeptos que já o aplaudiram e num estádio que lhe traz à memória momentos marcantes no papel de jogador visitado. Em termos psicológicos, o diferente contexto pode significar uma diferente reação aos assobios? "Coentrão tem recordações muito positivas do Estádio da Luz e foi de lá que deu o salto para o Real Madrid. Essas recordações vão voltar, mas estamos a falar de um jogador profissional, que está a representar o Sporting e que vai dar o seu melhor. O facto de ser profissional permite esse distanciamento", acredita Jorge Silvério, que se pudesse aconselhar Rui Vitória não faria do potencial descontrolo emocional do defesa leonino um aspeto a explorar.
"Quando se prepara um jogo, pensa-se em tudo, mas não se controla a reação do público e do jogador. O treinador deverá estar mais concentrado em potenciar os pontos fortes da sua equipa e aproveitar eventuais fragilidades do Sporting", vaticinou o psicólogo.
O que a história nos diz
Olhando para alguns exemplos mais mediáticos de jogadores que vestiram a camisola do Sporting após terem representado o Benfica, os regressos à Luz não correram de feição. Num outro caso que motivou a utilização da palavra traição por parte dos adeptos encarnados, Paulo Sousa e Pacheco trocaram o emblema da águia pelo do leão no célebre verão quente de 1993. No final desse ano, a 18 de dezembro - dias após o acidente de viação de que o sportinguista Cherbakov foi vítima - ambos foram titulares e... brindados com assobiadelas monumentais por parte do público benfiquista. Não obstante, os verde e brancos foram derrotados por 1-2, com golos de Yuran e Isaías para o Benfica e de Figo para o Sporting, este último na sequência de um canto executado por... Pacheco.
Outro regresso à Luz que não correu de feição foi o de João Pinto. Dispensado por Vale e Azevedo no verão de 2000, apesar do estatuto de capitão e dos protestos dos benfiquistas - "Azevedo ladrão queremos o nosso João" ou "Vale = 0 João Pinto = 20.000.000$", podia ler-se em escritos dos adeptos -, rumou imediatamente a Alvalade. Quando voltou à antiga casa, tinha à sua espera uma reação mista: uns aplaudiram, outros assobiaram. Mais contundente foi o sentimento no final do jogo, bastante negativo para os verde e brancos. Os leões foram derrotados por 0-3, com um golo de Van Hooijdonk de grande penalidade a inaugurar o marcador e um bis de João Tomás a fechar as contas, num encontro que ficou igualmente marcado pelas despedidas de José Mourinho e Augusto Inácio dos respetivos comandos técnicos.
No sentido contrário, quem se deu bem com o retorno ao antigo estádio foi Simão Sabrosa, ainda que com contornos diferentes. O extremo deixou Alvalade com destino a Barcelona em 1999 - "devo tudo ao meu querido Sporting", afirmou na altura - e dois anos depois aterrou em Lisboa para vestir a camisola do rival. No primeiro jogo frente ao clube que o formou, marcou de grande penalidade mas não festejou. No dérbi da segunda volta, não jogou por estar lesionado, mas foi protagonista ao afirmar dias antes do encontro que gostava de que o Benfica custasse o título ao Sporting. "Acredito numa vitória do Benfica em Alvalade e, se tiver de ser para roubar o título ao Sporting, melhor ainda", disparou. Meses depois, em dezembro de 2002, no derradeiro clássico do velhinho Alvalade, fez a assistência para o segundo golo, apontado por Tiago - Zahovic inaugurou o marcador -, de uma vitória do Benfica por 2-0.
Um dos últimos a sentir na pele os assobios foi André Carrillo, até pela forma como se mudou para a Luz. Em março de 2017, entrou aos 74 minutos e foi alvo de um coro de assobios, no empate a um golo entre os rivais.
Se alargarmos este lote de regressos mediáticos a treinadores, nem tudo são vitórias benfiquistas. Há pouco mais de dois anos, Jesus foi recebido com vaias, uma tarja em que se podia ler "nada nem ninguém é maior do que o Benfica" e vários papéis arremessados na sua direção, mas o Sporting foi à Luz alcançar a única vitória no reduto do rival na última década, com um estrondoso 3-0.