Que expectativas tem sobre a cimeira UE-África? Não é tarde para travar a influência de outros atores como Rússia ou mesmo Turquia? A Europa ainda não acordou. Há um pouco de sonambulismo no caos. O jihadismo tem progredido, especialmente no sael em África. A região foi tomada pelos jihadistas e pelos autocratas da Rússia, enquanto Erdogan anda a circular para falar sobre negócios com a Turquia..A Europa está a falhar? Falhamos porque temos uma abordagem muito conservadora na relação com a África. Apenas queremos ajudar, em vez de trabalhar com África. É uma escola muito antiga dos anos 1960. Mas, hoje estamos em 2022. Então a Europa está 60 anos atrasada em África. A Europa pensa que o que tem que ver com a África é para a África, mas na verdade também é para a Europa. Tem de ser uma parceria vantajosa para ambos. A Europa está a perder influência e oportunidades. A cimeira foi adiada. E agora, podíamos esperar algo de novo. Mas o que aconteceu? A presidente da Comissão foi para a África e fez exatamente o mesmo circo que veio a ser repetido por antigos líderes europeus..Refere-se ao anúncio de 150 mil milhões de investimento nos próximos sete anos? Sim. Falamos de milhares de milhões. Mas eu acredito no setor privado, na economia. Agimos como se fôssemos fazer o trabalho dos presidentes africanos. E qual é o trabalho deles então? Não acredito nessa solução. Ir lá e acenar com dinheiro nunca funcionou. Estou muito cética porque o cenário é o mesmo e para mim é um déjà vu. Não fico só triste, mas também furiosa. É uma enorme falta de respeito pelo potencial humano e falta de consciência da realidade. Quando analisamos, o dinheiro aumenta e vemos a segurança a diminuir e a responsabilidade dos líderes a diminuir. E isto não faz soar alarmes na Europa. Nunca vi outro cenário. Nasci e cresci em África, no Burkina Faso. Vi líderes europeus que vieram com cheques. Sabe o que mudou na minha vida de jovem em África? Absolutamente nada. A única coisa é que o presidente tinha mais dinheiro para nos intimidar como estudantes. E é tudo. E, dinheiro europeu..O plano que vai ser apresentado na cimeira envolve condicionalidades nos direitos humanos, direitos das mulheres, saúde sexual e reprodutiva, governança, valores e outras áreas. Vê em África a vontade de responder a estes compromissos? Haverá sempre resposta. Se formos para a praça pedir às pessoas que digam o que queremos ouvir, dermos um cheque, as pessoas vão concordar. Não é o plano que está fundamentalmente errado. É o controlo e a prestação de contas..O que pode ser feito? Os jovens africanos são fortes, inteligentes e motivados. Eles não são indefesos. Não estão sentados à espera de que a Europa venha salvá-los. Antes de ingressar na política, no setor privado vi como é difícil estruturar uma operação bancária com alguns países africanos. Precisamos de ouvir os bancos, quais são os problemas com que se deparam. A segunda questão que enfrentei foi a da contabilidade das PME. Para muitas PME, em África, não se consegue a contabilidade deles ou não é centralizada. Há empresas que têm muito potencial, que têm muito dinheiro, mas que não têm estrutura legal, como aqui, onde se pode simplesmente ir ao Banco Central e avaliar o potencial de uma empresa. Em África não. A dívida do país também nunca é boa por causa da burocracia ou por causa dos maus hábitos. E tudo isso não é levado em consideração. O que a Europa está a fazer é a dar o remédio errado a um paciente que ainda não está doente. Dando o remédio, o paciente fica doente porque quer aquele remédio, quer aquele dinheiro, quer o dinheiro grátis..Mencionou os jovens. Todos os anos há milhares que chegam à Europa. As migrações são um dos temas da cimeira. Como deve ser tratado pelos governos da UE e de África? A grande, grande questão é que os líderes africanos precisam de ser líderes dos seus próprios países e fazer o próprio trabalho, ajudar os seus povos, amparar os jovens e procurar ambientes seguros para eles e para as empresas. Os países são independentes desde os anos 1960. Porque é que o relacionamento ainda é baseado no velho paradigma? Se a mentalidade não mudar, os mesmos erros produzirão os mesmos resultados. Em segundo, a crise migratória não é apenas por razões económicas, mas também por razões de segurança. Se vir como os jihadistas incendiaram países como Burkina Faso, Níger, Mali... Mas quando o islamismo começou a invadir a religião, o que fizemos como comunidade internacional? Fechámos os olhos. E agora 1,5 milhões de pessoas estão deslocadas no Burkina Faso por causa do islamismo e dos criminosos russos que estão lá com o grupo Wagner..Falou numa mentalidade do passado e em déjà vu... Tinha 7 anos quando vi o primeiro golpe de Estado no Burkina Faso. E algumas pessoas estavam a dançar nas ruas e algumas também estavam a chorar. E ouvia os meus pais: tens de te deitar. Porque nunca se sabe o que pode acontecer. E, na verdade, depois, ouvimos a Europa a apelar ao regresso da ordem constitucional. Mas que ordem constitucional? Também não havia antes. Sempre foi o mesmo presidente. E mudou a Constituição para permanecer presidente. Pedir para voltar à ordem constitucional mostra quão pouco é o conhecimento da Europa. Então achamos que o dinheiro vai resolver os problemas. Nós damos o dinheiro, o dinheiro vai para os bolsos errados e é usado. Isso está a ajudar ditaduras e a intimidar pessoas comuns..O seu trabalho na área dos direitos das mulheres é conhecido. Têm existido avanços neste campo?.Vejo algum progresso, um progresso não muito forte, mas algum que vem das próprias mulheres..joao.f.guerreiro@tsf.pt
Que expectativas tem sobre a cimeira UE-África? Não é tarde para travar a influência de outros atores como Rússia ou mesmo Turquia? A Europa ainda não acordou. Há um pouco de sonambulismo no caos. O jihadismo tem progredido, especialmente no sael em África. A região foi tomada pelos jihadistas e pelos autocratas da Rússia, enquanto Erdogan anda a circular para falar sobre negócios com a Turquia..A Europa está a falhar? Falhamos porque temos uma abordagem muito conservadora na relação com a África. Apenas queremos ajudar, em vez de trabalhar com África. É uma escola muito antiga dos anos 1960. Mas, hoje estamos em 2022. Então a Europa está 60 anos atrasada em África. A Europa pensa que o que tem que ver com a África é para a África, mas na verdade também é para a Europa. Tem de ser uma parceria vantajosa para ambos. A Europa está a perder influência e oportunidades. A cimeira foi adiada. E agora, podíamos esperar algo de novo. Mas o que aconteceu? A presidente da Comissão foi para a África e fez exatamente o mesmo circo que veio a ser repetido por antigos líderes europeus..Refere-se ao anúncio de 150 mil milhões de investimento nos próximos sete anos? Sim. Falamos de milhares de milhões. Mas eu acredito no setor privado, na economia. Agimos como se fôssemos fazer o trabalho dos presidentes africanos. E qual é o trabalho deles então? Não acredito nessa solução. Ir lá e acenar com dinheiro nunca funcionou. Estou muito cética porque o cenário é o mesmo e para mim é um déjà vu. Não fico só triste, mas também furiosa. É uma enorme falta de respeito pelo potencial humano e falta de consciência da realidade. Quando analisamos, o dinheiro aumenta e vemos a segurança a diminuir e a responsabilidade dos líderes a diminuir. E isto não faz soar alarmes na Europa. Nunca vi outro cenário. Nasci e cresci em África, no Burkina Faso. Vi líderes europeus que vieram com cheques. Sabe o que mudou na minha vida de jovem em África? Absolutamente nada. A única coisa é que o presidente tinha mais dinheiro para nos intimidar como estudantes. E é tudo. E, dinheiro europeu..O plano que vai ser apresentado na cimeira envolve condicionalidades nos direitos humanos, direitos das mulheres, saúde sexual e reprodutiva, governança, valores e outras áreas. Vê em África a vontade de responder a estes compromissos? Haverá sempre resposta. Se formos para a praça pedir às pessoas que digam o que queremos ouvir, dermos um cheque, as pessoas vão concordar. Não é o plano que está fundamentalmente errado. É o controlo e a prestação de contas..O que pode ser feito? Os jovens africanos são fortes, inteligentes e motivados. Eles não são indefesos. Não estão sentados à espera de que a Europa venha salvá-los. Antes de ingressar na política, no setor privado vi como é difícil estruturar uma operação bancária com alguns países africanos. Precisamos de ouvir os bancos, quais são os problemas com que se deparam. A segunda questão que enfrentei foi a da contabilidade das PME. Para muitas PME, em África, não se consegue a contabilidade deles ou não é centralizada. Há empresas que têm muito potencial, que têm muito dinheiro, mas que não têm estrutura legal, como aqui, onde se pode simplesmente ir ao Banco Central e avaliar o potencial de uma empresa. Em África não. A dívida do país também nunca é boa por causa da burocracia ou por causa dos maus hábitos. E tudo isso não é levado em consideração. O que a Europa está a fazer é a dar o remédio errado a um paciente que ainda não está doente. Dando o remédio, o paciente fica doente porque quer aquele remédio, quer aquele dinheiro, quer o dinheiro grátis..Mencionou os jovens. Todos os anos há milhares que chegam à Europa. As migrações são um dos temas da cimeira. Como deve ser tratado pelos governos da UE e de África? A grande, grande questão é que os líderes africanos precisam de ser líderes dos seus próprios países e fazer o próprio trabalho, ajudar os seus povos, amparar os jovens e procurar ambientes seguros para eles e para as empresas. Os países são independentes desde os anos 1960. Porque é que o relacionamento ainda é baseado no velho paradigma? Se a mentalidade não mudar, os mesmos erros produzirão os mesmos resultados. Em segundo, a crise migratória não é apenas por razões económicas, mas também por razões de segurança. Se vir como os jihadistas incendiaram países como Burkina Faso, Níger, Mali... Mas quando o islamismo começou a invadir a religião, o que fizemos como comunidade internacional? Fechámos os olhos. E agora 1,5 milhões de pessoas estão deslocadas no Burkina Faso por causa do islamismo e dos criminosos russos que estão lá com o grupo Wagner..Falou numa mentalidade do passado e em déjà vu... Tinha 7 anos quando vi o primeiro golpe de Estado no Burkina Faso. E algumas pessoas estavam a dançar nas ruas e algumas também estavam a chorar. E ouvia os meus pais: tens de te deitar. Porque nunca se sabe o que pode acontecer. E, na verdade, depois, ouvimos a Europa a apelar ao regresso da ordem constitucional. Mas que ordem constitucional? Também não havia antes. Sempre foi o mesmo presidente. E mudou a Constituição para permanecer presidente. Pedir para voltar à ordem constitucional mostra quão pouco é o conhecimento da Europa. Então achamos que o dinheiro vai resolver os problemas. Nós damos o dinheiro, o dinheiro vai para os bolsos errados e é usado. Isso está a ajudar ditaduras e a intimidar pessoas comuns..O seu trabalho na área dos direitos das mulheres é conhecido. Têm existido avanços neste campo?.Vejo algum progresso, um progresso não muito forte, mas algum que vem das próprias mulheres..joao.f.guerreiro@tsf.pt