Assalto a Raqqa põe protagonistas do conflito em rota de colisão
O cerco a Raqqa - a capital do Estado Islâmico (EI) na Síria - e o envolvimento direto dos EUA nas operação terrestres contra a capital do Estado Islâmico na Síria estão a gerar uma série de movimentações militares e diplomáticas que ameaçam colocar em confronto direto as estratégias dos diversos protagonistas do conflito.
Aviões americanos lançaram no final da semana passada pela primeira vez centenas de combatentes das Forças Democráticas Sírias (SDF) e elementos das forças especiais americanas na retaguarda das linhas do Estado Islâmico junto à barragem de Tabqua, 45 km a oeste da cidade de Raqqa. O movimento das forças de coligação, coordenado com avanços a norte da barragem, contou com o apoio aéreo de Apache do Exército americano e de uma unidade de artilharia dos marines enviada para a Síria no início do mês.
A barragem, que garante o fornecimento de eletricidade à região, bem com o aeroporto militar nas proximidades, constitui um objetivo estratégico importante e a ação das forças da coligação parece anunciar uma intensificação da manobra para isolar Raqqa e preparar o assalto ao bastião do EI.
A ponte aérea montada pelos Estados Unidos constitui uma manobra sem precedentes e indicia um crescente envolvimento direto americano nas ações no terreno, ao mesmo tempo que se assiste a uma notória intensificação dos bombardeamentos aéreos americanos contra as posições do Estado Islâmico.
Esta escalada do envolvimento militar americano na Síria coincide com uma cimeira dos 68 membros da coligação anti-Estado Islâmico liderada pelos EUA, em que o secretário de Estado Rex Tillerson anunciou uma atitude mais "forte" e "agressiva" dos EUA face ao Estado Islâmico.
O presidente Donald Trump tinha já dado sinais no mesmo sentido ao reforçar, no início do mês, o dispositivo militar americano no terreno, com o envio de unidades de marines e de rangers. Ao mesmo tempo os conselheiros militares americanos passaram a atuar muito mais perto da linha da frente para coordenar as operações no terreno e impedir a repetição de incidentes entre diversas fações envolvidas no cerco de Raqqa.
A intensificação dos bombardeamentos americanos provocou dezenas de vítimas civis na área de Tabqua e noutros pontos nas províncias de Raqqa e de Aleppo e poderá também corresponder a um novo padrão operacional. O próprio Donald Trump deu sinais claros durante a campanha eleitoral de que tencionava reduzir as restrições para minorar o risco de vítimas civis dos ataques aéreos e a nova administração deu mais autonomia aos comandantes no terreno para tomarem decisões operacionais.
O assalto a Raqqa está, por outro lado, a mobilizar outros protagonistas do conflito sírio, e em particular a Turquia e o regime de Bashar al-Assad. O presidente Recep Erdogan anunciou numa conferência de imprensa em meados de fevereiro que, depois da batalha de Al-Bab, os próximos alvos da operação Euphrates Shield, lançada pelas forças de Ancara no Norte do Iraque no verão do ano passado, seriam Manbij e Raqqa. As SDF, lideradas pelas Unidades de Proteção Popular (YPG), tomaram Manbij ao Estado Islâmico em agosto de 2016. As YPG, próximas do PKK turco, são consideradas uma organização terrorista em Ancara.
Um eventual avanço sobre Raqqa colocaria as tropas turcas diretamente em confronto com as forças das SDF, que são aliadas dos Estados Unidos, numa situação que se revela de grande delicadeza diplomática para o governo de Ancara.
O comandante da coligação anti-Daesh (acrónimo usado na língua árabe para Estado Islâmico) liderada pelos Estados Unidos, general Stephen Towsend, disse recentemente que estavam em curso negociações com a Turquia sobre o papel que poderia caber a Ancara na operação para libertar Raqqa.
As intenções turcas são acompanhadas com visível inquietação em Damasco. O regime de Assad assistiu impotente ao assalto a Al-Bab e à criação de uma zona de influência turca a escassos 30 km a norte de Aleppo. As forças sírias ocuparam várias posições a sul de Al-Bab, numa ação destinada ao que tudo indica a cortar o passo a uma eventual progressão turca em direção a Raqqa.
A situação afigura-se tanto mais complexa quanto a intervenção turca no Norte da Síria ocorre no contexto de uma aproximação entre a Rússia, apoio crucial do regime de Damasco, e a Turquia. Os avanços turcos contariam, nessa perspetiva, com a anuência de facto da Rússia a uma partilha de zonas de influência no Norte da Síria.
O representante permanente de Damasco junto das Nações Unidas, Bashar al-Ja"afari, sublinhou no final da semana passada que qualquer ofensiva militar apoiada pelos Estados Unidos ou pela Turquia contra Raqqa deve ser coordenada com o governo sírio ou será "ilegítima".
O diplomata sírio denunciou o reacender dos combates nos arredores de Damasco a que se assistiu na última semana como uma manobra destinada a perturbar o reinício das negociações de Genebra e de Astana (Cazaquistão) entre o regime e a oposição síria e apontou uma vez mais o dedo aos países que apoiam diversas fações da oposição síria.
O presidente da Síria, Bashar al-Assad terá, para já, conseguido, graças ao apoio militar do regime russo, garantir a sobrevivência no poder, mas vê assim fugir-lhe o controlo de grande parte do território do país. Acentua-se assim a ameaça de um arrastar do conflito e de uma fragmentação da Síria que muitos consideram já irreparável.