Aspiraram o dossel da rainha pela primeira vez em 30 anos

Os pendentes azuis foram retirados, aspirados e inspecionados e estrutura do dossel limpa com mil cuidados. São assim as limpezas gerais no Palácio Nacional da Ajuda.
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Até 12 de fevereiro vai ser assim: um andaime com rodas a circular pelo Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa, técnicos de bata branca e pincel na mão, o vruuuuuummm dos aspiradores e a técnica de têxteis Filomena Miranda à janela a costurar a colcha da cama da rainha ou outro tecido nobre que se encontre por aqui.

O Palácio Nacional da Ajuda está a fazer as limpezas gerais. Podiam ser em março, quando começa a primavera, mas não, coincidiriam com os meses menos concorridos da antiga casa de D. Maria Pia, do rei D. Luís e dos seus dois filhos. Janeiro e fevereiro são a época baixa no museu. Diretor há dois anos, José Alberto Ribeiro decidiu que as limpezas anuais seriam feitas sempre com a casa aberta, ainda que algumas salas tenham o acesso vedado. "Apesar de haver menos turistas, há sempre visitantes", diz.

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Esta semana começaram a tirar as peças das vitrinas, a embrulhar os móveis em plástico e a retirar os têxteis. "É uma casa, tem muitos objetos, coleções muito variadas". Ao todo, explica José Alberto Ribeiro, 25 pessoas estão envolvidas nesta campanha que passará pelas 43 salas visitáveis do museu. "Tem mesmo de ser por segmentos". O trabalho divide-se pelos técnicos da casa, uma empresa de conservação e restauro e os estagiários deste curso da Universidade Nova.

Começaram pelos aposentos da rainha no piso térreo do palácio, esta semana. O toucador, com teto pintado por Maria Augusta Bordallo Pinheiro, irmã de Rafael e Columbano, já estava livre de pó e fechado na quinta-feira quando o DN visitou o local. "Está com este aspeto de casa em mudanças", desculpa-se o anfitrião. Cheia a cera.

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As atenções da equipa concentravam-se agora no quarto de Maria Pia, a rainha oriunda de Itália que casou com D. Luís aos 14 anos e tomou conta desta casa em 1862. "Há 30 anos que não se tirava o dossel", explica José Alberto Ribeiro. Essa é a grande tarefa nesta empreitada. Os pendentes foram retirados, a passamanaria também. A estrutura dourada em madeira não sai e foi tratada com a ajuda do andaime. Com um pincel varre-se o pó para a boca do aspirador. Nas alcatifas, as mesmas que aqui foram aplicadas no século XIX, usa-se uma rede para não agredir a matéria.

Voluntários há 30 anos

Joaquim, um dos voluntários da Ajuda, foca-se agora no lustre. São 18 lâmpadas, outras tantas peças de vidro em forma de tulipa. "Acende a luz", pede a uma das pessoas que está na dependência. Inspeciona o candeeiro e pede para a apagar. O material chega-lhe ao topo do andaime de maneira rudimentar: um balde preso por uma corda. "É o nosso voluntário de ouro", diz José Alberto Ribeiro.

Durante a presença do DN no palácio, o balde cai desamparado ao chão. Não há danos em peças históricas a lamentar. "Estas coisas acontecem", diz o diretor, brincando com Joaquim. "À terceira é despedido".

A equipa de voluntários é crucial, sublinha o diretor. Alguns dedicam-se ao Palácio há 30 anos, como Fernanda Almeida Henriques. Chama-lhe o "património de todos nós". Vem do Estoril todas as quintas-feiras para restaurar as porcelanas. Começou a fazer este trabalho em Inglaterra, onde estudou e dar horas aos museus é normal, diz. Em Lisboa, foi convidada pela anterior diretora, Isabel Silveira Godinho. Tem um curso de restauro e, por estes dias, dedica-se à Sala Saxe, a sala cor de rosa repleta de porcelanas de Meissen, uma das prediletas da rainha. "Não é virmos aqui para nos distrairmos, é um compromisso", afiança.

Sob a consola, as suas mãos delicadas e unhas pintadas de encarnado, limpa todos os recantos da peça de porcelana. O segredo é usar água destilada primeiro e uma mistura de água destilada ("sempre água destilada") e álcool depois. Deixa toda a porcelana "a brilhar", diz. Também usam papel absorvente e cotonetes para manter o pó longe da Ajuda e dos recantos mais ínfimos destas figuras.

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Outra voluntária aspira uma pequena estante com livros na mesma sala. "Estão muito frágeis". Também dedica a quinta-feira ao palácio. Dá aulas de restauro numa Academia para a Terceira Idade e "faz de tudo" no Grupo dos Amigos de Lisboa, "uma associação fundada em 1936", conta.

Por aqui, "havia trabalho para anos". Bastaria entrar na sala onde costumam trabalhar, afastada da curiosidade dos visitantes. Uma estante da sala Saxe está lá em restauro há dois anos, desde que, acidentalmente, um escadote lhe caiu em cima.

"Não se trata de passar óleo de cedro e spray", garante José Alberto Ribeiro. Os móveis em madeira são limpos com um produto hidratante e desinfetante, para prevenir o aparecimento de xilófagos, insetos da família dos carunchos. "É um tratamento de conservação e mais preventivo". No chão de parquet aplicam uma mistura de cera de abelha e aguarrás.

A campanha de limpezas nos aposentos da rainha deve ficar concluída a tempo de receber os visitantes deste fim de semana, enquanto outras salas se começam a fechar para os mesmos fins. No dia 12, Manuela Santana, que coordena as limpezas, conta que o Palácio Nacional da Ajuda reluza de limpo.

Quem visitou o Palácio esta semana encontrou informação que dava conta dos trabalhos em curso "para conservar o património". "Se calhar até fazem percursos que normalmente não se fazem, por corredores que habitualmente não estão abertos ao público."

Centenas de euros em limpezas

Quanto custa uma campanha deste género? José Alberto Ribeiro garante que não muito. "Umas centenas de euros. O mais oneroso é a equipa da empresa que nos dá apoio" e, depois, os produtos necessários. Mas, assegura, "fica mais barato do que ter o museu fechado". Deixar as portas das divisões abertas enquanto os trabalhos decorrem é que é impossível.

Na sala verde, antiga divisão de trabalho da rainha D. Maria Pia (e onde deu à luz o primogénito, D. Carlos), Filomena Miranda, de agulha na mão cosia o galão da colcha da cama da rainha, enquanto o colchão da monarca toma ar. Filomena é técnica de conservação de têxteis do Palácio e diz que todos os anos é preciso fazer este trabalho enquanto o tecido não leva um restauro a fundo. Vira o tecido e mostra as marcas da passagem do tempo. As zonas laterais onde o pesado galão de passamanaria está a ser reforçado, estão mais brilhantes do que o resto.

A luz fez danos irreversíveis nos damascos. Basta lembrar a Sala Azul, um aposento de cariz íntimo, reformulado ao gosto de Maria Pia entre 1863 e 1865 pelo arquiteto da Casa Real, Joaquim Possidónio da Silva, documentado nas aguarelas de Enrique Cazanova, que serviram de base à reconstituição museológica. Hoje podia facilmente chamar-se Sala Amarela, a atual cor das sedas que revestem as paredes.

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