As vacinas, a pandemia e o excesso de mortalidade
"A decisão mais importante que tomamos consiste em crer que vivemos num mundo amigável ou hostil"
(Albert Einstein)
Hoje, dia 11 de Março de 2023, assinala-se o terceiro aniversário, inesperado e indesejado, da declaração de pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), sendo previsível que na próxima reunião da OMS, agendada para Abril, sejam finalmente iniciados os procedimentos necessários para a ditosa proclamação do fim da pandemia.
Naturalmente, a presença de vírus SARS-CoV-2 sob a forma de ameaça à escala global ao longo dos últimos 3 anos teve consequências nefastas significativas, tais como, a sobrecarga, o desvio e a exaustão de recursos, particularmente sentidos na área da saúde, com consequente perda de vidas, sequelas duradouras, complicações futuras e atrasos no rastreio e seguimento de outras doenças, bem como, elevados prejuízos financeiros decorrentes de sucessivos períodos de encerramento da economia, das inúmeras restrições, do desemprego, etc.
Se a pandemia foi o acontecimento nefasto precipitante ("o Mau"), as vacinas forneceram salvação ("o Bom") e o excesso de mortalidade configurou-se como o elemento de impacto mais tenebroso da pandemia ("o Vilão").
As vacinas foram desenvolvidas num breve trecho de 9 meses, o número de meses da gestação do ser humano. Beneficiaram, é certo, de muitos anos de investigação que permitiram o desenvolvimento e o aperfeiçoamento da nova tecnologia baseada no RNA mensageiro.
No que concerne à aprovação das vacinas, foram invocados mecanismos mais actuais e céleres, sempre sem compromisso da segurança. Muitos se lembrarão do sucedido nos Estado Unidos da América (EUA), a propósito do primeiro tratamento para os doentes com SIDA, denominado AZT, nos finais dos anos 80 do século passado. Então, o atraso na aprovação do dito tratamento dizimou milhares de vidas, realidade que bem ilustrada foi no filme O Clube de Dallas (Dallas Buyers Club), de 2013. Desta feita, o processo de aprovação foi agilizado sem qualquer detrimento, reiteramos, em sede de segurança e salvaguardando, sim, inúmeras vidas. Assim têm afiançado, repetidamente, centenas de estudos publicados nas mais prestigiadas revistas científicas médicas. Tais estudos têm corroborado a elevada eficácia e segurança das vacinas, confirmando, continuadamente, as avaliações e a monitorização permanente das agências do medicamento (por exemplo, a EMA - European Medicines Agency - na União Europeia), que autorizam todos os fármacos que usamos - do banal analgésico ao mais sofisticado fármaco para o tratamento de uma doença rara. Por exemplo, num estudo recente (Vaccines) que seguiu entre Janeiro de 2021 e Julho de 2022, isto é, ao longo de 18 meses, toda a população com idade igual ou superior a 6 anos da província de Pescara, na Itália, os cerca de 260 mil habitantes vacinados não apresentaram qualquer aumento de risco de morte por motivo não-covid ou de efeitos adversos graves em relação aos cerca de 56 mil não vacinados.
Não é demais lembrar que as vacinas foram as grandes responsáveis pela situação de quase normalidade que vivemos nos últimos meses. Em Portugal, a situação epidemiológica estável, a par da elevada taxa de cobertura vacinal e de imunidade, contextualiza a posição actual da Direção-Geral de Saúde de já não considerar necessária a vacinação universal com a 2.º dose de reforço (isto é, a 4.ª toma) da população dos 18 aos 49 anos, sem condições de risco e com esquema vacinal primário e uma dose de reforço. Um sinal do benefício das tomas anteriores.
Já foram administradas mais de 13 mil milhões de vacinas no âmbito da maior campanha de vacinação de sempre da história da Humanidade. O impressionante avanço da ciência que gerou as prodigiosas vacinas que tantas vidas salvaram, é motivo de grande alegria, acentuou a importância do conhecimento para a preservação e melhoria da vida humana (contrastando com o quadro bélico que hoje vivemos) e será seguramente recordado por futuras gerações.
A pandemia, isto é, o "Mau", detém uma forte ligação à China, que se pode revelar alfa e ómega da mesma. Na China encontramos, provavelmente, o princípio e o fim da pandemia. Aí surgiram os primeiros casos de covid-19 e aí poderá emergir o seu fim, se se confirmar que a suspensão das restrições após três anos da política "Covid zero", a 7 de Dezembro de 2022, não condicionou a emergência de novas variantes e mutações que pudessem ameaçar os outros países. O anúncio da cessação da necessidade de testagem obrigatória para quem viajasse da China para países vizinhos como, por exemplo a Coreia do Sul, é sinal de que a pandemia se aproxima do seu fim.
A devastação causada pela pandemia ficou ostensivamente patente em todos os grupos etários, mesmo nas crianças onde as suas repercussões terão sido menores. Segundo dados oficiais dos EUA (Centers for Disease Control and Prevention), a covid-19 foi responsável pela morte de 821 crianças e jovens dos 0-19 anos, no período de Agosto de 2021 a Julho de 2022, tendo-se convertido na 5º causa de morte por doença e na primeira causa de morte por doença infecciosa ou por doença respiratória nesse grupo etário. Concluiu um estudo recente (JAMA Network Open) que a mortalidade poderá ter sido mais elevada, devido à subnotificação ou à não valorização da covid-19 como causa contributiva para o óbito por outras doenças e que a covid-19 causou mais mortes dos 0-19 anos do que qualquer outra doença prevenível pela vacinação no período imediatamente anterior à disponibilização da vacinação.
O "Vilão" no quadro pandémico traduz-se no excesso de mortalidade, excesso esse que numa pandemia resulta de dois principais factores: I) mais óbitos por uma doença nova e (II) disrupção e esgotamento da resposta dos serviços de saúde com impacto nas outras doenças. A covid-19 não foi excepção. Oficialmente, o número de óbitos monta a cerca de 7 milhões, tendo a OMS estimado, em artigo publicado na Nature, um valor de cerca de 15 milhões de excesso de mortalidade atribuído à covid-19, só no período de 2020 a 2021. Ou seja, um valor real quase 3 vezes mais elevado que o oficial.
No que toca ao excesso de mortalidade mensal na União Europeia, ocorreram entre Janeiro de 2020 e Dezembro de 2022 (dados Eurostats) 4 picos de excesso de mortalidade superior a 20% ao valor médio para o período homólogo calculado nos 4 anos anteriores (2016-2019). Os picos ocorreram em Abril e Novembro de 2020 e em Abril e Novembro de 2021, tendo de longe o mais elevado tido lugar em Novembro de 2020. Nos dois primeiros picos, em 2020, as vacinas não se encontravam disponíveis e no terceiro pico, em Abril de 2021, a sua distribuição era muito escassa. Se não houve mais excesso de mortalidade, devemo-lo, pois, às vacinas.
De acordo com a Heart, as pessoas com infecção pelo SARS-CoV-2, mesmo as que não requereram hospitalização, comportam um risco aumentado nos meses seguintes de fenómenos tromboembólicos e de morte súbita, subsistindo ainda, após a infecção, um aumento do risco de desenvolvimento de outras doenças, como a diabetes. Acresce que, dados relativos à população holandesa (The Lancet), permitem concluir que 1 em cada 8 sobreviventes da covid-19 poderá evoluir para Covid longo.
Destaquemos, em todas estas situações, que a prevenção de infecção e de gravidade fornecidas pela vacinação está associada a um efeito protector que se encontra devidamente documentado. A título de exemplo, num estudo recente (JAMA Internal Medicine) sobre o excesso de mortalidade em médicos americanos, constatou-se que, entre Março de 2020 a Dezembro de 2021, faleceram mais 622 médicos do que o número previsto e que o excesso de mortalidade apenas se verificou no período em que as vacinas não se encontravam disponíveis.
Sabemos sobejamente que as pandemias são uma ameaça real e inevitável, no contexto da qual a mais eficaz arma de combate é criada e fornecida pela ciência. Infelizmente, parafraseando Carl Sagan, vivemos numa sociedade muito dependente da ciência, na qual a maior parte das pessoas nada sabe de ciência. Perante a inevitabilidade de uma próxima pandemia, o caminho é só um: a promoção do conhecimento e da literacia para assim minimizar os riscos da ignorância e da ilusão do conhecimento que tanto favorecem a desinformação.
Nota: Os autores não escrevem de acordo com o novo acordo ortográfico.
Filipe Froes é Pneumologista, Consultor da DGS, Ex-Coordenador do Gabinete de Crise para a covid-19 da Ordem dos Médicos e Membro do Conselho Nacional de Saúde Pública
Patricia Akester é fundadora de GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria e Associate de CIPIL, University of Cambridge