As tentações do Padre Papisco no romance de estreia de Bruno Paixão

Professor universitário, Bruno Paixão acaba de se tornar escritor, depois de já ter sido jornalista. <em>Os Segredos de Juvenal Papisco </em>é um tributo assumido ao realismo mágico e ao poder transformador das histórias.
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Diz que sempre se sentiu escritor mas foi a pandemia que lhe criou a ocasião para sê-lo. Bruno Paixão, professor universitário, antigo jornalista (por exemplo no DN, onde trabalhou mal concluiu a licenciatura em Ciências da Comunicação) estreia-se na ficção com um primeiro romance, Os Segredos de Juvenal Papisco (Porto Editora), que chega esta semana às livrarias depois de ter vencido o Prémio Literário Luís Miguel Rocha. No cenário imaginado de um lugar chamado Orão cruzam-se um padre de comportamento singular, um alcaide corrupto, uma benzedeira afamada e muitos rumores capazes de incendiar uma pequena comunidade fechada sobre si mesma.

"Posso dizer que este livro corresponde ao fracasso de um método", diz ao DN o agora estreante romancista. "Há muito tempo que queria sentar-me a trabalhar continuamente numa história, mas nunca conseguia. Esse tempo chegou com a pandemia. Passei a dar aulas remotamente e dei por mim a escrever às vezes 20 horas sem parar, numa pequena quinta que tenho perto de Coimbra." Nesta quinta dita da Pouca Terra, Bruno tem uma antiga carruagem de comboio que lhe serviu de escritório: "Tornou-se o meu lugar de paz, de silêncio, é porventura o lugar de que mais gosto entre todos os lugares que conheço."

A sensação de fracasso, explica, nasce-lhe do facto de se ter sentado para escrever uma história e lhe ter aparecido outra, bem diferente: "Desde o tempo em que fui jornalista que tinha a encomenda de um juiz, que me pôs na mão os processos originais das FP 25, pedindo-me que escrevesse um romance sobre isso." Bruno ainda avançou com a primeira frase ("No dia em que..."), mas quando deu por si "não estava a escrever uma história passada nos anos 1980, mas, sim, no século XIX. Não se passava em Lisboa, mas, sim, num lugar imaginado, algures na América do Sul."

Assumidamente marcado pelos autores do realismo mágico, não planeou o que haveria de acontecer às suas personagens nem ao modo como estas se relacionariam entre si: "Posso dizer que foram ganhando vida própria e às vezes dei por mim a sofrer também com o seu sofrimento." Bruno também assume que estas suas criaturas não são fáceis de definir: "Acredito que, na vida, ninguém é continuamente bom ou continuamente mau. Mesmo a melhor pessoa do mundo pode ter uma má conduta aqui ou ali e a pior também consegue ter gestos de grande altruísmo e bondade. O que se passa com este padre Juvenal Papisco é que nem sempre o hábito lhe assenta bem. É capaz de gestos espontâneos, mas é capaz tanto de bondade e sentido de justiça, como de gestos de pura maldade."

Embora a fictícia Orão venha dotada de características mais tropicais do que a paisagem que o autor conheceu na infância, admite que foi "buscar muitas memórias que nem sabia que tinha, relacionadas sobretudo com velhas crendices ou práticas como as da benzedeira, a quem as pessoas recorriam mais do que ao médico." Ou ainda aos conflitos entre médicos e barbeiros porque "estes, se fosse preciso, também extraíam dentes e faziam pequenas intervenções cirúrgicas." Nesta liberdade, o autor não abdica, todavia, da riqueza semântica, procurando conciliar cuidado e criatividade. Foi assim que "surgiram neologismos, palavras não existentes no Dicionário como "desconfioso" (misto de manhoso e desconfiado) ou "pulgatório", que combina pulga com purgatório para definir uma comichão insuportável."

Nascido numa aldeia próxima de Coimbra, onde os livros eram bens escassos, Bruno cedo encarou a leitura como um pequeno, mas saboroso, luxo. "A minha tia, que vivia em Lisboa, levava-me todos os Natais um livro e eu lia-o e relia-o vezes sem fim. Encontrava sempre coisas novas." Seria, no entanto, a carrinha da biblioteca itinerante da Gulbenkian que permitia que a sensação de Natal se repetisse todos os meses: "Lá ia eu, com a minha bicicleta Sirla, e ficava horas à espera. Acredito que essas bibliotecas foram decisivas para muita gente, um pouco por todo esse país fora. Sou muito grato por isso."

Em boa parte por causa dessa experiência, o novo romancista vai agora envolver-se num programa de incentivo à escrita, em colaboração com a Porto Editora. A uma primeira sessão presencial seguem-se outras, disponíveis no site da editora : "O nosso objetivo é levar as pessoas a compreender que toda a gente tem uma voz narrativa, desde que se torne autoconfiante e trabalhe." Já com milhares de inscrições, entre clubes de leitura, academias sénior, bibliotecas e escolas secundárias, encara esta atividade como um ato de militância cívica. "Acredito que o discurso político não muda opiniões ou convicções, mas penso que uma boa história, seja através de um livro ou de um filme, tem o poder de mudar vidas." Para além disto, revela estar já a escrever novo romance. Mas ainda não será a história que lhe encomendou o juiz.

dnot@dn.pt

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