Há quase dois anos, o referendo sobre o Brexit foi obra de um primeiro-ministro e de um governo. Mas foi também obra da situação da sociedade e da economia da Grã-Bretanha, assim como da histórica desconfiança, suposta ou real, daquele país relativamente ao resto da Europa ocidental. Qual dos três factores foi o mais importante na determinação dos resultados do referendo e do caminho incerto que desde então tem sido trilhado é a pergunta que se impõe. Se o factor mais importante foi a má liderança e a má política, podemos esperar que pouco mude no futuro próximo e que as estreitas relações da Grã-Bretanha com os vizinhos europeus continuem fortes e progressivas. Se os outros dois factores forem os determinantes, então muito mudará. A resposta, todavia, poder ser optimista..Comecemos pela história. O mapa da CEE de 1957 coincide de forma assinalável com o do império de Carlos Magno ou com o da soma das nações francesa, alemã e italiana que lhe sucederam. Nestes mapas não cabiam a Inglaterra, a Escócia, o País de Gales e muito menos a Irlanda. Essa fronteira política que era também geográfica durou ao longos dos séculos, tendo-se manifestado em vários momentos importantes da história. O Brexit veio reavivá-la..Mas sabemos igualmente que aquela fronteira foi derrubada em momentos importantes, perto de nós, como foi o caso das duas guerras mundiais, da Guerra Fria e da teimosamente tardia adesão do Reino Unido às Comunidades Europeias, em 1973. É, portanto, uma fronteira móvel. A história pode ser - e é frequentemente - mudada..O Brexit deve também ser visto como uma resposta à situação económica na Grã-Bretanha. Foi nesse sentido em que os proponentes da saída da União Europeia defenderam que o país podia enfrentar as dificuldades impostas pelos fluxos da globalização com instrumentos próprios de política económica, separados de Bruxelas e das demais capitais europeias. Esta interpretação das coisas levou muita gente a votar pela saída, incluindo aqueles que acham que mais directamente sofrem com a concorrência acrescida de produtores de outros países, sobretudo de manufacturas, ou dos trabalhadores imigrantes. Não é claro se este argumento é facilmente rebatível ou se já houve mudança de opinião sobre o assunto, em muitas cabeças e muitos corações. Mas sabemos com segurança que tal interpretação tem menos força hoje, mais perto da fase decisiva do processo, do que tinha há dois anos..Caso a história ou a defesa da economia britânica fossem os elementos determinantes do Brexit, seguramente que poderíamos esperar para os próximos tempos uma mudança significativa nas relações entre a Grã-Bretanha e o resto da Europa. Mas não são..O aspecto mais importante do caminho para o Brexit foi inquestionavelmente a iniciativa de um punhado de decisores políticos de objectivos bem definidos, onde pontificava a vontade de recuperar a parcela da força política que foi sendo transferida para fora do país..Os ganhos da integração do Reino Unido na União Europeia são inquestionáveis, mas ficaram de fora algumas classes e não apenas as classes menos abastadas. Ficaram de fora os políticos nacionalistas e extremistas como Boris Johnson e associados. Foram estes que provocaram o Brexti e são eles a principal causa dos problemas em que aquele país se colocou..Neste momento, a grande dificuldade do Brexit é a de conciliar os desejos dessa classe política, sedenta de maior protagonismo nacional, com as necessidades da população e da economia britânicas, associadas a uma estreita relação com a União Europeia. Parece claro que essa luta está à partida ganha, dada a desproporção das forças em contenda. Todavia, como sempre acontece, enquanto a luta não for ganha, muita gente perderá..Os contornos futuros da relação entre a Grã-Bretanha e a União Europeia são incertos, pois não está ainda definido o novo quadro institucional. Também é incerto o contexto em que se desenrolará as relações bilaterais da Grã-Bretanha com cada um dos países europeus e do resto do mundo. No entanto, torna-se cada vez mais claro que o Brexit não implicará um novo paradigma de relações económicas entre os dois lados da Mancha, mas apenas a satisfação das aspirações de uma classe política descontente consigo mesma. Mas essa classe política tem os dias contados e será apagada pelo novo modelo de relacionamento económico internacional da Grã-Bretanha, que dificilmente será muito diferente daquele que hoje temos. As principais "vítimas" do Brexit serão aqueles que irresponsavelmente o provocaram..Escreve de acordo com a antiga ortografia