AS PRIMEIRAS 24 HORAS NA 'SADDAMLÂNDIA'
O avião vindo de Amã aterra às seis da manhã. O aeroporto vazio chama-se Saddam Hussein (como tudo em Bagdad) e só está previsto mais um voo, de Damasco. No controlo de passaportes, um jornalista tem atenções especiais. "Siga-me", diz o homem com o bigode que Saddam tornou moda. E numa salinha segue-se a cena do polícia bom/polícia mau. "Porquê um telefone satélite?" O objectivo é arrancar uns dólares ao jornalista, devolver-lhe o passaporte e deixar passar o telefone já selado. Lá fora, esperam dezenas de taxistas. A escolha é Mumtaz, que fala inglês e já ajudou uma TV alemã. Oferece-se para guia por 120 dólares diários (aceita 70). No hotel Rachid, um gigante sudanês faz de porteiro. Para entrar, pisa-se o rosto em mosaico de Bush pai, o presidente americano que em 1991 expulsou os iraquianos do Koweit. Na recepção, informam que se paga em dólares, os Visa não funcionam. E a ordem é que, antes de descansar, há que ir ao Ministério da Informação. Aí, à frente do centro de imprensa, está mais um homem de bigode, que fala espanhol e explica as regras. O jornalista será sempre acompanhado por um funcionário. Pelo serviço paga cem dólares diários. Outra despesa: cem dólares/dia para usar o telefone satélite. A regra-chave: não ir a lado nenhum sem autorização. "Visitar Kerbala?" "Talvez."
À hora de almoço no White Palace, o contacto com os iraquianos reais. Na parede o retrato de Saddam vigia quem come masgouf, o peixe do Tigre. Basta dizer que se é jornalista e o terror estampa-se nos rostos. Correm rumores de gente que desapareceu só por ter dito o nome do ditador. Temem a Mukhabarat, a secreta. De volta ao hotel após parar para atestar o velho BMW (a gasolina sai a 2,5 cêntimos o litro, 50 dinares), a surpresa: bar com Internet. Depois, o óbvio: o Hotmail não funciona, só o e-mail do Rachid, e no ecrã pisca "não autorizado" sempre que se tenta o site da CNN.
Nova ida ao ministério. "Kerbala?" "É provável. Mas agora pode visitar Karrada." Qassim, o "espião", senta-se ao lado de Mumtaz no carro. Falam árabe, mas percebe-se "sahafi", jornalista. Já na rua central, três iraquianos proclamam que lutarão "por Saddam até à morte". Ao longe, uma mancha no céu. É o fumo da refinaria Dorrah. Quando os americanos atacarem, no dia 20, será destruída, tal como o palácio presidencial sobre o qual Mumtaz evita falar.
No Rachid, servem frango ao jantar. Numa mesa, um brasileiro prepara uma venda de tractores. Diz que há negócio para quem sabe lidar com o regime ("palavras abrem portas"). No quarto do 3.º andar, onde não há fotos de Saddam, a televisão emite canais árabes? e um americano dedicado à vida selvagem. No dia seguinte, Kerbala?
(Memória de 3 de Janeiro de 2003, quando o terror no Iraque se chamava Saddam)