As presidenciais começam hoje
Tem sido, surpreendentemente, o grande ausente da extensa análise eleitoral, mas o Presidente da República continuará a ser o elemento preponderante da política nacional. Tal como a legislatura acabou por ser cumprida também porque Belém nunca se definiu como contrapoder a uma solução governativa singular, mas antes como gestor dos equilíbrios e dos resultados, a ausência da maioria absoluta virtual esperada por António Costa (PS+PAN) faz de 2020 o ano mais importante do mandato do Presidente da República.
Vamos assumir que o governo minoritário do PS faz passar o seu programa de governo e o próximo orçamento com facilidade no Parlamento, seja com apoios ou abstenções dos partidos à esquerda ou do PSD. Esta tranquilidade aparente no início de mandato pode não ser acompanhada por acordos escritos (como em 2015), o que confere à dinâmica parlamentar uma lógica de negociação ainda mais acentuada do que a que tivemos. Mesmo sendo o primeiro-ministro um mestre da negociação e tendo a ajudá-lo uma boa equipa, isso não implica menos atrito com os partidos à volta da mesa. Pelo contrário. É na leitura dos atritos permanentes que o papel do Presidente da República também será sentido.
Em segundo lugar, como foi a espaços levantado na campanha, a pressão dos eventos externos pode inverter a sensação de estabilidade económica nacional. Os efeitos do Brexit nas trocas comerciais ou os seus impactos no turismo, as consequências de uma recessão na Alemanha diretamente em Portugal ou em economias europeias com embates indiretos por cá, ou ainda uma derrapagem na tensão comercial entre Washington e Pequim, já para não falar de uma reversão da performance económica espanhola à medida que se sucedem eleições legislativas (quatro em quatro anos), são argumentos que o governo não controla e que podem alterar o otimismo económico e orçamental. Os efeitos perversos dos choques externos podem alterar as dinâmicas negociais internas e obrigar o Presidente da República a assumir um papel mais interventivo na agenda política, sem cair na adulteração dos seus poderes.
Lembro que, apesar da formulação e condução da política externa ser competência do governo, há uma esfera constitucional disputável com o Presidente da República e que se traduz num maior ou menor alcance do nosso papel no mundo. A começar na União Europeia, cuja presidência assumiremos no primeiro semestre de 2021, calendário que coincide com um eventual início do segundo mandato de Marcelo Rebelo de Sousa. Se choques externos podem, em tese, ter diagnósticos e soluções distintos entre o executivo e a presidência, o melhor caminho é normalmente o resultado da boa articulação entre os dois. O Presidente da República não está nunca imune a danos colaterais nesse relacionamento.
Por fim, se as legislativas foram ontem, as presidenciais começam hoje. O espaço mais exíguo ocupado pelo PSD e CDS obriga Marcelo Rebelo de Sousa a alargar a base de apoio ao PS para uma hipotética reeleição. Mais, se quiser ultrapassar a fasquia de Mário Soares quando foi reeleito em 1991 (70%), o actual Presidente da República terá de simultaneamente esperar que o endosso do PS não inviabilize o apoio do PSD e do CDS. Isto seria um desenlace natural se as lideranças dos dois partidos fossem as atuais. Ora, o CDS vai entrar já em disputa identitária acesa e Rui Rio termina o mandato em fevereiro e ninguém pode garantir que as novas lideranças (a haver uma viragem significativa num e noutro) apoiem a reeleição do Presidente da República.
É uma mudança profunda, mas tem tudo para marcar o próximo ciclo político: a fragmentação da direita, e não o comportamento das esquerdas, é neste momento um fator de maior imprevisibilidade para qualquer cálculo feito em Belém.