"As pessoas não fizeram nenhum esforço para entender a posição do PCP sobre a guerra da Ucrânia"

Adelino Cunha é investigador e professor de História Contemporânea. É autor de seis livros, quatro sobre a história do PCP. Recentemente publicou <em>Para Que Serve o PCP? Os Anos da Fundação</em>.
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Porquê escrever sobre o PCP?
Isto começou tudo com o livro sobre Álvaro Cunhal. Pacheco Pereira estava a publicar uma série de volumes da biografia do líder comunista e a minha editora fez-me uma proposta para escrever uma biografia de Álvaro Cunhal. Para responderem à minha contestação de que Pacheco Pereira já tinha feito isso, eles mostraram-me um artigo de António Barreto em que este argumentava que os livros sobre Álvaro Cunhal de Pacheco Pereira eram, no máximo, uma monografia sobre o PCP, e não uma biografia do líder comunista. Voltei a ler os livros de Pacheco Pereira com outros olhos e achei que não eram uma biografia de Álvaro Cunhal. Tomei, então, a decisão de explorar a hipótese de escrever uma biografia do dirigente histórico do PCP. Na altura, estava-se a comemorar o aniversário da fuga de Peniche e eu estava, como jornalista, no Diário de Notícias, a escrever uma série de reportagens sobre a fuga de Peniche. Falei com dirigentes comunistas, como Joaquim Gomes, Carlos Costa. Comecei a perceber que havia no PCP um conjunto de pessoas que a sua história não tinha ainda sido contada. Era preciso convocá-los para a história publicada em livro. Mas faltava-me quem me falasse sobre Álvaro Cunhal. Liguei para a Eugénia Cunhal, irmã de Álvaro Cunhal, apresentei-me, disse que era uma pessoa que queria escrever a biografia do irmão, e ela respondeu-me como fazia sempre: "O meu irmão não participava em biografias dele e não quereria que eu participasse nisso, se o fizesse sentir-me-ia a desrespeitar a sua memória." Eu insisti em falar com ela pessoalmente. Expliquei-lhe a minha intenção e ela ajudou-me. Através dela falei com a filha de Álvaro Cunhal, a companheira do antigo líder comunista. Todo esse núcleo duro afetivo próximo de Álvaro Cunhal começou a falar comigo com um certo desprendimento. No meu entender, o facto de eu não ser comunista e ser uma pessoa séria contribuiu para que falassem comigo.

Mas escreveu quatro livros sobre os comunistas portugueses.
Apaixonei-me por parte da história do PCP. O partido na clandestinidade -- desde a fundação até ao 25 de Abril -- tem uma geração de pessoas que nós nunca mais teremos na nossa história, e que obviamente, por questões de idade, estão a desaparecer. Vou dizer isso com uma certa reserva, mas é o que eu sinto, o meu fascínio pelo PCP tem muito a ver com a clandestinidade. São pessoas que abandonam a sua vida familiar, cortam com os filhos, com os pais, para lutarem, em condições muito difíceis, por um ideal. Decidem, por uma causa política, desistir de ter família e sujeitarem-se à prisão e à tortura. E isso fascinou-me.

O meu livro sobre o Álvaro Cunhal é um contributo para colmatar esse buraco histórico, consegui escrever algo que conta com o testemunho da família dele, para além de várias fontes documentais.

E livro após livro tento abordar esse universo. O meu doutoramento é sobre a clandestinidade e a separação. Vou abordando, nas páginas que vou escrevendo, a forja que criou aqueles homens e mulheres. Este livro é um pouco filho desse interesse, começa nas origens do PCP e acaba na bolchevização do partido.

Esse seu estudo sobre o PCP alterou a sua visão política das coisas em geral? Trabalhou no gabinete de Miguel Relvas, no governo de Passos Coelho, e escreve livros sobre comunistas?
Eu fui adjunto no XIX Governo Constitucional durante 11 meses. Tenho 52 anos, 20 anos de jornalismo e 11 de professor universitário, estou a acabar um segundo doutoramento e tenho seis livros publicados. Esses 11 meses da minha vida não têm este peso. Do ponto de vista político, não nos formamos num dia nem em 11 meses. Se a minha posição de cidadão mudou por estudar muito o PCP? Não. O meu objetivo como historiador não é mobilizar politicamente ninguém. É interpretar períodos históricos que eu acho fundamentais e tirá-los de uma certa invisibilidade. Este livro não tem nenhuma ambição de funcionar como instrumento político, embora eu não possa esconder uma coisa: se este livro [Para Que Serve o PCP?] suscitar um debate sobre o que o PCP pode fazer nos próximos 100 anos, eu acho que é um debate importante. Mas quero que seja um debate historiográfico, nunca a nível político-partidário.

A minha observação sobre as suas posições políticas baseava-se também num certo discurso de contexto que parece contracorrente sobre a guerra entre a Rússia e a Ucrânia.

O estudo do PCP ajudou a repensar a minha posição? Sim e não. Porque é que os meus comentários criaram uma certa perplexidade? Eu propus-me apenas uma coisa: dar contexto histórico e permitir que se percebesse a perspetiva dos russos. As pessoas de início acharam que era um bocadinho bizarro, como é que se podia tentar explicar um ponto de vista que é errado e moralmente condenável? Depois tentaram criar aquilo que as bolhas fazem: um rótulo. Eu só tive este tipo de posição por via do meu conhecimento histórico. Todo o debate foi feito em redor de bolhas. Quando dizem que as redes sociais e a internet vieram democratizar, é absolutamente falso. Criaram bolhas que estabelecem uma interpretação da verdade e que criam um determinado contexto. Não há pluralismo, o que há é um fechamento do debate. O que eu quis foi contribuir para o aumento da pluralidade na discussão. Apenas quis introduzir contexto histórico. Dir-me-ão, isso acabou por dar uma perspetiva diferente das posições dominantes e dar alguma luz sobre as opiniões divergentes, como as do PCP? Admito que sim.

Não é minha a culpa de que as pessoas não leram, nem estudaram, nem fizeram nenhum esforço para entender a posição do PCP sobre a guerra da Ucrânia.

E porque é que não quiseram entender a posição do PCP?
No início, por culpa do próprio PCP. Eu faço um artigo no Expresso com o título provocatório "E se o PCP tiver razão?". Parto da ideia de que o PCP foi forjado muito próximo da Revolução russa, esteve na Internacional Comunista, fez a sua bolchevização nesse quadro, e a interpretação do mundo do PCP, um pequeno partido periférico, era feita no quadro mental da União Soviética. Quando esta desaparece, o PCP perde a sua referência moral. Perde o seu quadro interpretativo e, por isso, perde a sua força de explicar o mundo. A identidade do PCP é de um partido que sabemos que é marxista-leninista e no dia em que perder isso perde a sua razão de existir.

E o que é que isso tem a ver com a Rússia de Putin?
Tem tudo a ver. Para o PCP está no mesmo espaço emocional, apesar de ser verdade que a Rússia de Putin não é em nada herdeira da União Soviética.

A ser herdeira, seria tão herdeira como a Ucrânia.
Concordo, mas surge num espaço geográfico e emocional de onde surgiu o primeiro Estado operário do mundo, a que o PCP está ligado, e neste espaço há ainda uma resistência à hegemonia dos Estados Unidos da América.

Há aqui qualquer coisa que não bate certo. No início da invasão da Ucrânia, o PCP começa por condenar o regime de Putin e este, no dia da invasão, acusa Lenine de ter criado a Ucrânia, que seria, para o atual dignitário do Kremlin, um Estado artificial...
Mas o PCP não foi claro logo no início. Isso lê-se, por exemplo, na revista Militante [órgão teórico do PCP]. Revelou dificuldades em qualificar a invasão de invasão. O que acho é que tiveram dificuldades em interpretar o que se estava a passar. Demorou tempo para que alguns dirigentes do partido qualificassem aquilo que se estava a passar de invasão.

Mas o PCP, apesar dessa ligação de que fala em relação à União Soviética, esteve muito tempo desligado da Internacional Comunista. No seu livro relata uma tentativa de voltar a reatar relações com a Internacional Comunista por intermédio do Partido Comunista dos EUA. No entanto, os comunistas portugueses só vão reatar muito mais tarde, por intermédio de Álvaro Cunhal, as relações com a IC.
O livro trata dos anos da fundação. O título é Para Que Serve o PCP? Os Anos da Fundação. Começa com a introdução das ideias marxistas em Portugal, a fundação da Federação dos Maximalistas Portugueses, as origens anarquistas do partido e a sua posterior bolchevização. E o livro termina aí. A minha proposta é tentar perceber o que define a identidade do PCP. São estas cinco dinâmicas que explicam, no meu entender, o que é o PCP: o marxismo, o maximalismo, o anarquismo, o comunismo e o marxismo-leninismo. Esse último resulta do processo de bolchevização, em que o PCP surge como destacamento nacional da Internacional Comunista. Foi um processo muito longo, com fluxos e refluxos. A dificuldade desse processo tem a ver com as suas origens anarco-sindicalistas. No primeiro congresso legal verifica-se já uma imposição da IC, em que o delegado, o suíço Humbert Droz, impõe, como secretário-geral do partido, Carlos Rates, que anos mais tarde será expulso e acabará na União Nacional, o partido do regime salazarista. É só quando o Bento Gonçalves faz a primeira reorganização do partido, em 1929, que esses erros começam a ser resolvidos. Mas isso não foi suficiente, temos que esperar por 1940-1941, por Álvaro Cunhal, Júlio Fogaça e outros para que o PCP se transforme num partido marxista-leninista. A minha teoria é esta: o partido nasce como uma necessidade histórica antes de o ser, havia uma urgência no movimento operário de criar um partido político para ter uma maior capacidade de intervenção. O partido nasce num país em que o movimento operário tem uma forte presença anarquista, de tal forma que o partido não nasce de um cisão dos partidos socialistas, mas a partir de militantes anarquistas no movimento operário. É o único partido comunista que essa influência anarquista é determinante. O Partido Socialista em Portugal era fraco, estava enredado em dinâmicas políticas burguesas. Não perceber que o PCP nasce do anarco-sindicalismo, que aparece ligado à força do movimento operário e que se forma como partido com o marxismo-leninismo é não entender aquilo que é o PCP. Quando se pede ao partido que mude, o que se pede que faça? Deixar de ser um partido do movimento operário? Deixar de ser um partido marxista-leninista?

Os partidos comunistas que vieram dos socialistas não foram também marxistas-leninistas?
Durante alguns anos foram. Mas o PCP não cedeu ao eurocomunismo. Um partido com mais de 100 anos de história é um partido que existe num tempo longo, não pode ser interpretado sistematicamente neste tempo imediato das redes sociais. Nós temos que o analisar como algo que nasce em determinadas circunstâncias e mantém uma identidade. Mesmo quando o PCP tem de "divergir", digamos assim, fá-lo por razões da sua portugalidade. É o caso quando -- em tempos da teoria da coexistência pacífica na União Soviética -- o partido português defendia um levantamento popular armado em Portugal. Essa divergência existe para expressar as condições próprias da situação portuguesa e mostra a convicção de Álvaro Cunhal que é possível uma revolução em Portugal para derrubar o fascismo. Nessa altura, o PCP desafia Moscovo, ao negar a aplicação da coexistência pacífica a Portugal, não aceitando esvaziar a luta de classes. Álvaro Cunhal, embora esteja num partido pequeno e periférico, era altamente prestigiado e considerado no movimento comunista internacional. É por isso que consegue impor a sua visão sobre o derrube do fascismo em Portugal em tempos em que o Partido Comunista da União Soviética falava da necessidade de uma coexistência pacífica entre dois blocos. Isso rompe com a ideia de que o PCP esteve sempre alinhado com Moscovo. Esteve alinhado nas questões internacionais, mas, quando se tratou de derrubar o fascismo em Portugal, o PCP foi bastante claro e seguiu apenas as convicções dos comunistas portugueses.

Há um problema que fala no seu livro que é a perda de mediação. Em que medida isso afeta o PCP?
As pessoas estão a dispensar os políticos, os jornalistas, os historiadores, para apurar o que se passa e o que se passou. Há muito tempo a esta parte há uma coisificação do espaço público. Assistimos a isso sobre a Ucrânia e também sobre a guerra de Israel em Gaza. As ideologias deixaram de ser suficientes para explicar o mundo. Como é que um partido político que tem uma visão e interpretação da história e é forjado nela pode explicar a sua narrativa nesse novo ambiente de perda de sentido coletivo. Esse fenómeno é uma das principais dificuldades do PCP, que tem uma ideologia e quer fazer o debate num mundo totalmente fragmentado e dividido em bolhas, numa sociedade de pessoas irritadas em que se perde esta dimensão coletiva.

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