AS PESSOAS INFELIZES NÃO TÊM HISTÓRIA OU É MUITO INGRATO CONTÁ-LA

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Há semanas que arrasto aqui uma coluna a tentar contar a história de uma pessoa infeliz, Mariazinha, rejeitada pelo sucesso (ganha 500 euros por mês enquanto secretária de uma agência imobiliária), Mariazinha indesejada pelos rapazes por falta de glamour e mamas, Mariazinha triste e tímida, insegura e patética, angustiada e angustiante. Como quase todos os infelizes, a vida de Mariazinha é muito introspectiva - significa que Mariazinha chafurda obsessivamente na sua própria infelicidade.

Para além do seu quarto com paredes cinzentas da humidade entranhada, o mundo é uma coisa muito relativa para Mariazinha. Não vai muito além do Bairro de Alfama, (é ali que mora, num beco que, à entrada, tem sempre um caixote do lixo entornado) ou da Avenida da Liberdade, onde fica a sede da imobiliária que secretaria com raiva, que foi o que arranjou, depois de vários empregos em lojas sequenciais ao término da apropriada licenciatura em História.

Além de infeliz, Mariazinha é uma pessoa desagradável. É invejosa, não só das mamas das outras como também do dinheiro, das roupas, dos apartamentos T5 nas Avenidas Novas que todos os dias ajuda a transaccionar, e já não falo aqui das moradias do Belas Clube de Campo.

Às vezes Mariazinha chega a ser horrorosa. Os infelizes são pessoas terríveis. Ela própria sente-se esporadicamente um monstrozinho do mal, o que a enche com culpa e isso não melhora as coisas. Já lhe passou pela cabeça roubar (um vestidinho Armani) e passar uma rasteira à boazona da Clotilde, que abana o rabo provocatoriamente enquanto meneia os ombros entre a máquina do café e o chefe da agência e isto várias vezes por dia. Passar uma rasteira à Clotilde, vê-la cair de bruços no chão, quiçá ensanguentar-se. Pior: Mariazinha imagina/deseja que o embate leve a dentadura de Clotilde do seu lugar habitual até ao colo do chefe, o Sô Campos. Clotilde desdentada, um sonho para Mariazinha. Clotilde com a dentadura no colo do chefe. Clotilde nojenta, miserável, incapaz de abanar o rabo, morta para Eros. É um horror a perfídia dos infelizes - e também ela bestialmente culpabilizante.

Clotilde às vezes sorri para Mariazinha e oferece-lhe cigarros. É nestas alturas que a culpa dispara. Mas mal Clotilde vira costas (costas e rabo), o monstro da inveja salta para cima de Mariazinha, retira-lhe a culpa às pazadas, e torna-a, ainda que por enquanto só em pensamentos, um nojo de perfídia.

Se o leitor chegou aqui, agradeço-lhe. Os meus amigos já não chegam. Não querem histórias de infelizes. Mas eu prometi-lhes que tudo isto vai mudar no mês que vem. Mariazinha, em breve, fará 35 anos e nascerá para a vida. A culpa, a infelicidade, a perfídia, o desgosto, tudo vai desaparecer. São os meus votos sinceros.

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