As pernas da rainha
O jornalista morreu a meio da reportagem. Deixou viúva a notícia, e três artigos menores por editar. Consta que a notícia, despudoradamente, anda já por aí a dar nas vistas, para garantir o share da sobrevivência. Fim de citação". Quem me traz a "Notícia" é o João de Sousa Teixeira, poeta amigo que também já foi jornalista.
Ora bem, ali ao lado arde tanto como cá, as imagens do fogo ocupam as televisões e, no entanto, leio que a foto mais procurada do verão espanhol, e seu último tabu real, é a de Doña Letizia em biquíni. Fora isso e a guerra, a visita do coração de D. Pedro a Brasília, onde é recebido com honras militares e salvas de canhão, bem como a disputa dos funerais de José Eduardo dos Santos, falecido há 46 dias, revelam como um defunto, ou uma pequena parte de outro, podem intervir numa campanha eleitoral.
Mas voltemos ao fogo, onde está a emoção. Pelas televisões, assistimos há semanas à devastação da nossa floresta. Passamos da tristeza à raiva e novamente à desolação. É natural. Vivemos quase todos em centros urbanos, mas muitos de nós mantêm sentimentos e laços reais com o Portugal rural. O mais desconcertante, à medida que o fogo avança, é aquela sensação de sermos espetadores do inevitável, como se os incêndios fossem produto da mera providência e mais não restasse senão franzir a sobrancelha e cerrar os dentes, de cada vez que o oráculo vermelho se estende na passadeira dos ecrãs, com o título: "Portugal em chamas".
CitaçãocitacaoO jornalista morreu a meio da reportagem. Deixou viúva a notícia e três artigos menores por editar. Consta que a notícia, despudoradamente, anda já por aí a dar nas vistas, para garantir o share da sobrevivência. Fim de citação.esquerda
Somos como aquela família do romance: Passamos tantos anos a assistir pela televisão aos infortúnios dos outros que, quando a nuvem tóxica invade o bairro, somos incapazes de reagir. Em Sociedade do Espetáculo, Guy Debord, um dos inspiradores das manifestações do Maio de 68, demonstra que é natural que nos sintamos como as personagens da novela: a espetacularização da realidade (chama-se agora "teatro de operações") provoca uma aceitação passiva do estado de coisas, vistas do sofá.
E não há notícia de incêndios que não seja acompanhada pela mesma narrativa, subtil, mas repetida até à náusea: a onda de calor aumentou o risco de incêndio, o terreno acidentado e a falta de acesos dificultam o combate; o vento é forte e traiçoeiro, ... fatores incontroláveis. Justificações certamente verdadeiras, mas redundantes, e apresentadas como se tudo o que ocorre obedeça a forças superiores, porventura para além da nossa compreensão.
Nem de propósito, o EFIS (Sistema Europeu de Informação sobre Incêndios Florestais) aponta 2022 como o pior ano desde o início do século, associando este agravamento a um modo de vida nosso, focado esgotamento dos recursos, geralmente em benefício de poucos, e no abandono do que já não é "produtivo". Em suma, uma estratégia de terra queimada.
Por estes dias, quando o fogo junta o céu e a terra, lembro a história que se conta na minha aldeia, por alturas da tradicional Romaria de Verão: Já era fim de tarde e a bebida começava a fazer estragos quando se avistou fumo vindo dos lados do casario. Temendo que o fogo chegasse a suas casas, os vizinhos apressaram-se para apagá-lo. Na festa, para continuá-la, só restou o boticário, o mais rico das redondezas, insistindo que quem devia correr era o dono dos haveres em perigo. Todos lhe ignoraram o conselho: a casa que tinha pegado fogo era, justamente, a dele.
Talvez por causa dessa interposição massiva das imagens de incêndios, esquecemos que o principal é mesmo apagar o fogo e, acima de tudo, tentar evitá-lo. Porque o que arde e desaparece é sempre nosso, o que é comum. Enquanto desejamos, ou querem que desejemos, continuar com a festa, é bom que saibamos que apenas alguns se divertem. Nem que seja a pensar nas pernas da rainha.
Jornalista