As penas e o bico
O vírus infeta todos e agora concentra-se nos nossos mais velhos. Cai por dia um grande avião com 200 a 300 passageiros. Todos os demais estamos também infetados, mas por doença intercorrente: as oposições alisam com o bico as penas desalinhadas, os comunicadores inflamam e aterrorizam o povo com o faiscar das ambulâncias, o "colapso" do oxigénio, o "privilégio" de políticos, a espiral dos números, os casos de polícia dos infratores. O governo oscila com as pressões.
E, todavia, por detrás de um drama com imagens mil vezes repetidas tem de estar uma saída, um fim de ciclo: para uns a requisição das fábricas de vacinas, para outros, a demissão de ministros, para outros ainda, um governo de salvação nacional, finalmente muitos clamam por São Marcelo, a rasgar o mar para que o povo passe.
Com o excesso de drama tendemos a esquecer o real, o essencial, tal como nos relatam casos vividos na primeira pessoa: a infeção propaga-se pela comunhão de famílias, amigos, desportistas, farristas à volta de uma sortida mesa, máscara no bolso, nada como alegria e copos para matar o vírus; pelas passeatas que todos decidimos fazer no mesmo dia e hora; pelas entradas e saídas no país nas últimas festas, algumas entre continentes; pelo alegre convívio da malta jovem, as "bejecas" sorvidas entre inalações e expirações de gotículas virais. Muito mais do que por aulas e intervalos com disciplina observada, por transportes públicos com máscara e desinfeção, por trabalho na indústria e construção com distância, disciplina e testes frequentes.
O drama que vivemos não carece de ser ampliado, mas prevenido e combatido. Sabemos bem como: distanciamento físico, proteção individual, higiene constante, fim dos encontros e visitas, ficar em casa. E destapado um caso, comunicando-o de imediato, com inquéritos e rastreios a exigirem o máximo de atenção e reforço para circunscrever o contágio. Não tivemos sucesso nos rastreios, recursos escassos foram esmagados pelo volume de casos. E não tapámos a tempo a brecha que se foi alargando.
Valeram-nos os hospitais do SNS. Sim, agora afogueados de trabalho. Dispensando bem o pânico empolado por repórteres inexperientes e editores em crise de audiências. Deixem que o pessoal de saúde trabalhe com serenidade. São a nossa última barreira de defesa.
Vamos ter ainda semanas más. Sabemo-lo porque agora todos somos epidemiologistas e matemáticos. Jennifer Nuzzo, da Universidade de Johns Hopkins traz algum otimismo: os EUA, quase no fim de janeiro registavam mais de cem milhões de infetados e 24 milhões de vacinados. Admitindo que cada positivo tenha a seu lado três silenciosos, Nuzzo estima que cerca de um terço dos americanos tenham já adquirido algum grau de imunidade. Acresce que em três semanas os novos casos naquele país se reduziram em 35% ao dia.
No nosso retângulo e ilhas temos nesta altura 685 mil casos confirmados e 250 mil vacinados, dois terços dos quais em duas tomas. Prioridade é devida à vacinação e à pressão internacional para que as fábricas cumpram os acordos. Não dispomos da longa manus de Israel, já com cinco milhões de vacinados, apenas de armas diplomáticas comuns. Usemo-las, reforçando a UE a que transitoriamente presidimos.
E deixemo-nos de discussões estéreis que só fazem perder tempo e energia a quem tem de manter a cabeça fria. Deixemo-nos de objurgatórias, escarmentações, demissões compulsivas recomendadas e outras ridículas formas de indignação. Sim, a indignação é um direito, mas, como todos, termina onde começa o direito à tranquilidade dos não indignados. Todos temos de alisar as penas. Aos humanos basta-nos uma sacudidela e seguir em frente. Só as aves as limpam e alisam com o bico, para bem voarem.
Antigo ministro da Saúde