Porque é que eu nunca escrevi sobre o mar? A pergunta ocorre-me mais ou menos a meio de uma espécie de debate, e, ao vê-la formular-se, sou atravessado por um calafrio. Estamos em Ovar, num festival literário íntimo mas nem por isso isento de responsabilidades, e a ideia de não ter o que dizer quando o moderador voltar a fazer-me uma pergunta torna a assustar-me..É uma vertigem recente, que costumo atribuir a uma vergonha que passei em Matosinhos, há três ou quatro anos, quando eu e um colega escritor nos sentámo-nos com um colunista despachado, determinados os três a discutir um assunto que não dominávamos, e depois nenhum de nós tinha o que quer que fosse para dizer. Cheguei a desejar a morte súbita quando me dei conta do instante em que o senhor na segunda fila, abanando a cabeça, se apercebeu da fraude que constituíamos todos..Mas talvez até nem tenha nada que ver com Matosinhos. Estou simplesmente mais tímido e inseguro, com o passar dos anos, e o problema é que nem sempre consigo persuadir-me de que isso seja sinal de maturidade. Porque é que a consciência das nossas fraquezas haveria de ser melhor prova de inteligência do que a das nossas forças?.Desta vez é pior, porque do lado oposto da mesa está um poeta elegante e terno, com um traje hipster e uma tal generosidade de gestos - como, aliás, é próprio de um homem das Caxinas - que a plateia não tarda a render-se-lhe. Ouço-o nas suas metáforas ora doces, ora em staccato, a meio caminho entre o improviso e a programação, e é como se a cada palavra que diz aumentasse o volume à contagem decrescente para o momento em que eu próprio terei, penosamente, de pronunciar-me..Até que o moderador, que é o João Morales: "Julgo saber, João Rios [o poeta chama-se João Rios], que tu estiveste há não muito tempo nos Açores. Como é o mar dos Açores para um caxineiro? É o mesmo mar?".Levo de imediato a mão ao peito: e se ele me pergunta sobre o mar? Este tipo não deixa uma pessoa fugir à questão - o que tenho eu a dizer sobre o mar? Porque é que o mar é sempre tão periférico, nos meus livros, nas minhas crónicas, até no meu quotidiano? Porque é que os meus Açores são sempre tão feitos de terra e montanhas e pastagens e vulcões, e nunca o suficiente de mar?.Porque é que eu nunca escrevi sobre o mar?.Lembro-me da pergunta que fiz a mim mesmo, há agora mais seis anos, ao tornar a pousar os pés nestas ilhas com intenção, desta vez, de viver nelas. O sol deitava-se brandamente sobre a Canada dos Vinte, de que já então eu intuía a necessidade de fazer passeio semanal, e no horizonte as ilhas de São Jorge, Pico e Graciosa espalhavam-se como uma promessa de liberdade. Fumando um cigarro, sentado no muro de pedra, olhei-as. "E este mar? É o que nos separa ou o que nos une?".Agora está ali o João Rios, que vem de uma terra de pescadores, temeroso de um modo diferente desse mesmo mar que então olhei. Que sim, que é o mesmo, diz, recordando o dia em que o viu pela primeira vez a partir da ilha. O mesmo mar redentor e irado das Caxinas, que nos sustenta e leva tantos de nós - o mesmo mar, todo ele, e teria valido a pena (garante) percorrer aqueles mais de dois mil quilómetros por terra e ar mesmo que não houvesse sido possível ver mais nada senão esse mar que há tantas gerações mata a fome a caxineiros e açorianos, fazendo-se de vez em quando ressarcir com as vidas de mais três ou quatro deles..E só então, ao ouvi-lo, eu percebo porque nunca escrevi sobre o mar. Escrever sobre a terra foi quase fácil. Para escrever sobre o mar é preciso primeiro ser-se filho dele. E o que um filho do mar se pergunta nunca é: "É o que nos separa ou o que nos une?", mas sim: "É o que nos alimenta ou o que nos mata?" Para um filho do mar, dos Açores ou das Caxinas, o mar é uma questão de vida ou de morte. Já eu ainda não consegui vê-lo senão como um turista, um lisboeta. Talvez seja precisa uma tragédia antes de poder escrever sobre ele..As palavras do regresso: um livro, um filme, um blogue.A literatura portuguesa tem sido sobretudo uma literatura de partida. O projeto As Palavras do Regresso, da autoria do escritor Joel Neto e da tradutora Catarina Ferreira de Almeida, marido e mulher, propõe a viagem inversa: a do retorno..Consiste num livro centrado em diferentes tipos de regresso, todos eles com as ilhas dos Açores como primeira referência; num documentário de cinema e televisão (com realização de Arlindo Horta) feito a partir das entrevistas com esses que regressam; e ainda num blogue de viagem e making-of, já disponível em www.aspalavrasdoregresso.com..O patrocínio é da FLAD - Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento..Do que falamos quando falamos de regresso? Quantas vezes menciona quem regressa a palavra "saudade"? E a palavra "casa"? E "mãe"? E "pertença"? Que palavras se repetem? Que palavras ficam por dizer? E, no fim da nossa viagem, qual será a suprema palavra do regresso? Eis a demanda.. Conteúdos recentes .Crónica de Catarina Ferreira de Almeida.Michael Benevides: o trabalho do amor.Como se corta o bacalhau no Portugalia Marketplace, em Fall River.Os lugares da infância de Pauleta (apresentados por ele).Carlos Rafael: meio Corleone, meio Robin Hood - uma personagem para o cinema.Que outra indústria, antes da baleação, permitiu que índios e negros chegassem a postos de chefia?.A memória do 11 de Setembro
Porque é que eu nunca escrevi sobre o mar? A pergunta ocorre-me mais ou menos a meio de uma espécie de debate, e, ao vê-la formular-se, sou atravessado por um calafrio. Estamos em Ovar, num festival literário íntimo mas nem por isso isento de responsabilidades, e a ideia de não ter o que dizer quando o moderador voltar a fazer-me uma pergunta torna a assustar-me..É uma vertigem recente, que costumo atribuir a uma vergonha que passei em Matosinhos, há três ou quatro anos, quando eu e um colega escritor nos sentámo-nos com um colunista despachado, determinados os três a discutir um assunto que não dominávamos, e depois nenhum de nós tinha o que quer que fosse para dizer. Cheguei a desejar a morte súbita quando me dei conta do instante em que o senhor na segunda fila, abanando a cabeça, se apercebeu da fraude que constituíamos todos..Mas talvez até nem tenha nada que ver com Matosinhos. Estou simplesmente mais tímido e inseguro, com o passar dos anos, e o problema é que nem sempre consigo persuadir-me de que isso seja sinal de maturidade. Porque é que a consciência das nossas fraquezas haveria de ser melhor prova de inteligência do que a das nossas forças?.Desta vez é pior, porque do lado oposto da mesa está um poeta elegante e terno, com um traje hipster e uma tal generosidade de gestos - como, aliás, é próprio de um homem das Caxinas - que a plateia não tarda a render-se-lhe. Ouço-o nas suas metáforas ora doces, ora em staccato, a meio caminho entre o improviso e a programação, e é como se a cada palavra que diz aumentasse o volume à contagem decrescente para o momento em que eu próprio terei, penosamente, de pronunciar-me..Até que o moderador, que é o João Morales: "Julgo saber, João Rios [o poeta chama-se João Rios], que tu estiveste há não muito tempo nos Açores. Como é o mar dos Açores para um caxineiro? É o mesmo mar?".Levo de imediato a mão ao peito: e se ele me pergunta sobre o mar? Este tipo não deixa uma pessoa fugir à questão - o que tenho eu a dizer sobre o mar? Porque é que o mar é sempre tão periférico, nos meus livros, nas minhas crónicas, até no meu quotidiano? Porque é que os meus Açores são sempre tão feitos de terra e montanhas e pastagens e vulcões, e nunca o suficiente de mar?.Porque é que eu nunca escrevi sobre o mar?.Lembro-me da pergunta que fiz a mim mesmo, há agora mais seis anos, ao tornar a pousar os pés nestas ilhas com intenção, desta vez, de viver nelas. O sol deitava-se brandamente sobre a Canada dos Vinte, de que já então eu intuía a necessidade de fazer passeio semanal, e no horizonte as ilhas de São Jorge, Pico e Graciosa espalhavam-se como uma promessa de liberdade. Fumando um cigarro, sentado no muro de pedra, olhei-as. "E este mar? É o que nos separa ou o que nos une?".Agora está ali o João Rios, que vem de uma terra de pescadores, temeroso de um modo diferente desse mesmo mar que então olhei. Que sim, que é o mesmo, diz, recordando o dia em que o viu pela primeira vez a partir da ilha. O mesmo mar redentor e irado das Caxinas, que nos sustenta e leva tantos de nós - o mesmo mar, todo ele, e teria valido a pena (garante) percorrer aqueles mais de dois mil quilómetros por terra e ar mesmo que não houvesse sido possível ver mais nada senão esse mar que há tantas gerações mata a fome a caxineiros e açorianos, fazendo-se de vez em quando ressarcir com as vidas de mais três ou quatro deles..E só então, ao ouvi-lo, eu percebo porque nunca escrevi sobre o mar. Escrever sobre a terra foi quase fácil. Para escrever sobre o mar é preciso primeiro ser-se filho dele. E o que um filho do mar se pergunta nunca é: "É o que nos separa ou o que nos une?", mas sim: "É o que nos alimenta ou o que nos mata?" Para um filho do mar, dos Açores ou das Caxinas, o mar é uma questão de vida ou de morte. Já eu ainda não consegui vê-lo senão como um turista, um lisboeta. Talvez seja precisa uma tragédia antes de poder escrever sobre ele..As palavras do regresso: um livro, um filme, um blogue.A literatura portuguesa tem sido sobretudo uma literatura de partida. O projeto As Palavras do Regresso, da autoria do escritor Joel Neto e da tradutora Catarina Ferreira de Almeida, marido e mulher, propõe a viagem inversa: a do retorno..Consiste num livro centrado em diferentes tipos de regresso, todos eles com as ilhas dos Açores como primeira referência; num documentário de cinema e televisão (com realização de Arlindo Horta) feito a partir das entrevistas com esses que regressam; e ainda num blogue de viagem e making-of, já disponível em www.aspalavrasdoregresso.com..O patrocínio é da FLAD - Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento..Do que falamos quando falamos de regresso? Quantas vezes menciona quem regressa a palavra "saudade"? E a palavra "casa"? E "mãe"? E "pertença"? Que palavras se repetem? Que palavras ficam por dizer? E, no fim da nossa viagem, qual será a suprema palavra do regresso? Eis a demanda.. Conteúdos recentes .Crónica de Catarina Ferreira de Almeida.Michael Benevides: o trabalho do amor.Como se corta o bacalhau no Portugalia Marketplace, em Fall River.Os lugares da infância de Pauleta (apresentados por ele).Carlos Rafael: meio Corleone, meio Robin Hood - uma personagem para o cinema.Que outra indústria, antes da baleação, permitiu que índios e negros chegassem a postos de chefia?.A memória do 11 de Setembro