As paixões americanas de um Bob Dylan em viagem

Depois de 'Modern Times', de 2006, Dylan marca o retorno aos discos com 'Together Through Life', que hoje chega às lojas. Gravado sem grandes planos e entre palcos, é, de novo, o retrato da América que por estes dias procura novos romances e paixões pelas paisagens de sempre. Sem euforias nem revoluções.
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Bob Dylan poderia ser historiador. Já o é em jeito honoris causa, mas falta-lhe a formalidade da escrita no papel - ainda que Crónicas, a autobiografia que este ano deve revelar o seu segundo capítulo, esteja próximo dessa materialização. Este homem é a encarnação da América, único na sua visão de gentes e terras, de hábitos e mudanças. Equiparemo-lo apenas a Martin Scorsese, no tempo percorrido (apenas um ano mais novo) e na projecção daquilo que vê na obra que tem feita. Dylan volta a ser tudo isto, depois de um Modern Times (2006) que ainda hoje vemos perfeito na sua construção icónica mas nunca facilitada da América. E o novo álbum de Dylan poderia dar um filme a Martin Scorsese. Together Through Life é uma viagem pelo sul do país, seu berço e motor maior. Porque Dylan é o tal historiador, volta a ser narrador. Sem revoluções.

Em Modern Times, Dylan cantava "Ain't talking / Just walking", preocupado apenas com as cordas da guitarra, as rimas certas e a melodia apropriada. Os versos de protesto são para recordar na colecção Canções (recolha das letras dos temas que já gravou) e nas memórias descritas em Crónicas, a autobiografia. O mandamento voltou a gerir os dias que criaram Together Through Life, álbum nascido de um acidente. Dy- lan foi desafiado pelo cineasta francês Olivier Dahan para compor uma canção para o seu novo filme, My Own Love Song. Um road movie que o conseguiu motivar para novas sessões de improviso em estúdio. Começou com Life Is Hard, como se fosse um sexagenário com dores de amor nunca resolvidas. Um pequeno romance construído numa paisagem rural que disse a Robert Zimmerman por que razão deveria gravar um novo disco.

Together Through Life segue as premissas de Modern Times, ainda que sem o mesmo sentido de urgência, sem que Bob Dylan repita "aqui estou como nunca me viram". A epifania ficou em 2006 - por estes dias escuta-se o mesmo trovador decidido pelo conforto das tradições que melhor conhece, que foi ouvindo desde infante ainda em terras do Minnesota, sem ambições nem obrigações de gerar o sucessor para aquele que foi (mais) um disco de referência.

A homenagem vai para as origens do rock'n'roll, para os blues e todas as notas que surgiram da pauta desenhada durante séculos pelo delta do Mississípi. Dylan observa o Sul dos EUA com romance no olhar, mas pleno de pragmatismo. O berço que também pode ser o exemplo de tudo quanto é negativo num país de contrastes. O México, a influência de uma zona fronteiriça na criação de paisagens únicas (David Hidalgo e o seu acordeão, vindos dos Los Lobos, asseguram esta face tex-mex do disco). E a eterna referência a personagens, mais ou menos ficcionadas. Tudo como sempre foi, mas num tradicionalismo com carimbo de 2009.

Together Trough Life é romance a transbordar em cada rima, mais ou menos carnal, aqui e ali espirituoso. Sempre a relação a dois - paixão, amor, desejo - como solução para quase todos os problemas: fica apenas o acto de estar enamorado por ter solução. Bob Dylan acabou por não ser o animal político que muitos quiseram ver quando Blowin' In The Wind foi hino revolucionário. No século XXI, quando esta questão já nem é assunto, Dylan canta em tempos de crise com a certeza de soluções à vista. Não faz vénias ao salvador Obama, mas canta I Feel a Change Coming On. O Presidente dos EUA é apenas mais uma personagem, aquela que adorou conhecer ao ler Dreams of My Father. Como continua a ser Elvis, James Cagney ou até Dolly Parton e a "Jolene" que faz parte deste novo disco - não é o sucesso da cantora country revisitado, mas fugir à associação seria pecado.

Together Through Life nasceu, assim, do imediato que Bob Dylan viu enquanto dava continuidade à sua Never Ending Tour, a digressão que o tem levado numa inigualável road trip. Escrito no Outono, com o futuro próximo no horizonte. Gravado num ápice, com a banda que o acompanha em palco, para surpreender a editora e sem deixar espaço para muitas perguntas. Um disco que não tem muito mais ambições além de ser um retrato desejado e realista do seu criador. E nessa missão volta a ser exemplar.

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