As novas vítimas da PIDE
Acusada de difamação e ofensa à memória de Silva Pais, director da PIDE entre 1962 e 1974, a escritora e dramaturga Margarida Fonseca Santos é neste momento um símbolo. Não está apenas em causa a peça de teatro que escreveu, mas todas as peças de teatro que virão a ser escritas em Portugal. Não está apenas em causa o livro em que se inspirou, dos jornalistas José Pedro Castanheira e Valdemar Cruz, mas todas as obras já escritas e ainda por escrever sobre as vítimas da PIDE e de Salazar. O que se pretende com esta acusação não é apenas limpar a memória do responsável máximo duma polícia política criminosa e dos seus métodos gestápicos, mas abrir um precedente duma gravidade incalculável na democracia portuguesa. O que realmente está em jogo é a transformação dos juízes de Portugal em detentores exclusivos dum direito que é de todos nós, e que ficaria legitimado pelo próprio poder que exercem. O direito a escrever a história da ditadura. O direito a investigar continuamente as suas lacunas. O direito a repensar as fontes. A reinterpretá-las. A descobri-las até. E a transpor tudo isso para o teatro, para o cinema, para a televisão. E a fazê-lo sem medo. E sobretudo, acima de tudo, sem medo da justiça. Porque o medo da justiça, no que diz respeito a falar livremente de figuras como Salazar ou Silva Pais, pertence ao passado. Ou deveria pertencer. Tudo depende do veredicto que sair do processo em curso.
Margarida Fonseca Santos é acusada sobretudo de imputar a Silva Pais a autoria moral do assassínio de Humberto Delgado. Digamos que teve o infortúnio de ser a escolhida pelos sobrinhos de Silva Pais, entre os muitos escritores, jornalistas, historiadores e até figuras políticas que desde o "25 de Abril" já acusaram o ex-director da PIDE dessa autoria moral, até mais explícita ou enfaticamente do que na peça de teatro em questão. Como Fernando Silva Pais faleceu em 1981, antes de concluído o processo do Tribunal de Santa Clara relativo ao homicídio de Humberto Delgado, a sua responsabilidade criminal foi declarada extinta pelos juízes. Mas falta acrescentar que isso se torna irrelevante perante o facto de os mesmos juízes terem ilibado Barbieri Cardoso e Álvaro Pereira de Carvalho, responsáveis máximos da PIDE logo a seguir a Silva Pais. Durante o processo, Silva Pais afirmou que a "Operação Outono" não se destinava a assassinar Humberto Delgado, mas apenas a raptá-lo. E foi essa a tese a que se agarraram os próprios juízes. Tudo não teria passado de um súbito impulso homicida de Casimiro Monteiro, o autor material do crime, transformado em bode expiatório.
Aquilo com que estamos confrontados é com uma justiça portuguesa que deixou em legado para a posteridade, em 1982, um dos mais vergonhosos acórdãos de toda a nossa história. E queremos saber se, hoje, os juízes que estão a julgar Margarida Fonseca Santos são herdeiros dessa mesma justiça. Se tomarão por bons os métodos de distorção histórica - e inclusive de distorção da verdade material do crime - que foram então utilizados por razões políticas de simpatia salazarista em pleno regime democrático. É que, se o fizerem, estarão a dizer ao povo português que só os juízes têm o direito a escrever a história da ditadura. E nomeadamente a falseá-la sem contraditório. Ficaremos então a saber que estamos condenados a acreditar na mentira medonhamente urdida no Tribunal de Santa Clara - ou pelo menos condenados a ter medo da justiça. Em suma, aprenderemos uma grande lição, de que nunca mais nos esqueceremos. Que a justiça está acima da história.