"I read the news today, oh boy", cantavam os Beatles na canção A Day in the Life, (Um Dia na Vida)..Eu li as notícias e as notícias eram bastante tristes. Os números da violência doméstica em Portugal, as agressões e as mortes. A sucessão de mulheres mortas, nossas contemporâneas, sem que a nossa sociedade as proteja..Violência doméstica, as duas palavras deviam ser uma contradição, infelizmente não são..A estas notícias a realidade portuguesa acrescenta outras que deviam fazer a indignação varrer de vez a resignação. Há um juiz que justifica as suas decisões, reiteradamente desculpabilizadoras da violência de homens sobre mulheres, citando a Bíblia..Séculos e séculos que passaram antes que a sociedade europeia ocidental se livrasse da intromissão religiosa na esfera do que devem ser decisões humanas, tomadas em função de leis elaboradas e consensualizadas por comunidades regidas por princípios laicos, racionais e democráticos de convivência, e eis que no nosso conturbado presente regressa o argumento da autoridade bíblica como suposta sabedoria divina a contextualizar e a determinar as decisões daqueles que, mais do que quaisquer outros, a ela deveriam estar imunes..E quando não é o argumento bíblico são considerações supostamente moralizadoras absolutamente lamentáveis. O facto de o referido juiz ter sido sancionado unicamente com uma advertência pelo Conselho Superior de Magistratura - e por uma escassa maioria de votos e um número assinalável de abstenções, diz muito sobre o corporativismo instalado no sistema judicial e explica de forma concreta a desconfiança dos cidadãos perante a justiça em Portugal..Os números da violência doméstica escondem os nomes e as histórias, cada uma infeliz à sua maneira. Tragédias em que as mulheres e as crianças são as primeiras a não se salvar..As crianças, despojos abandonados dessas guerras, perdidas em adolescências em ruínas. Nossos vizinhos de cima, do lado, de baixo, como na canção da Suzanne Vega: "My name is Luka/ I live on the second floor/ I live upstairs from you" (O meu nome é Luka/ Eu vivo no segundo andar/ Eu vivo por cima de ti). "If you hear something late at night/ Some kind of trouble, some kind of fight/ Just don"t ask me what it was" (Se ouvires qualquer coisa a meio da noite/ Qualquer espécie de sarilho, qualquer espécie de luta/ Só não me perguntes o que foi). "Just don"t ask me how I am" (Só não me perguntes como estou)..E as mulheres. As mulheres, que em pleno século XXI, em Portugal, veem publicados num jornal um texto de uma mulher que diz que "A mulher gosta de se sentir útil, de ser a retaguarda e de criar a estabilidade familiar para que o marido seja bem-sucedido"..Um texto que parece ter sido escrito no Estado Novo e que depois de uma sucessão de proclamações que revogam a igualdade de direitos entre homens e mulheres atacando o feminismo precisamente conclui com a frase: "Por tudo isso declaro-me antifeminista e contra a nova Lei da Paridade.".Considerações que não deixam de ser vizinhas das do juiz desculpabilizador desculpabilizado. O que nós andámos para aqui chegar (parafraseio com ironia o verso do José Mário Branco)..A canção dos Beatles também diz "I saw a film today, oh boy." O filme com que remato a crónica é Roma, Óscar deste ano para melhor filme estrangeiro. Um filme sobre uma família no México dos anos 1970 e a sua empregada doméstica..Alfonso Cuarón, no seu discurso de agradecimento do Óscar que também ganhou como melhor realizador, refere que a protagonista do filme, Cleo, uma mulher indígena, é uma dos setenta milhões de empregadas domésticas em todo o mundo que não têm direitos laborais. Personagens que têm sido esquecidas e relegadas para pano de fundo de inúmeras histórias com outros protagonistas..Uma frase que podia ser dita há não muitos anos a propósito das mulheres em geral, que hoje ainda pode ser dita em relação a muitas mulheres e que temos de lutar para que no futuro seja dita em relação a cada vez menos mulheres em qualquer sítio do mundo.