As Nações Unidas face ao desafio talibã

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António Guterres acaba de sublinhar a gravidade da situação humanitária que vive o Afeganistão. Lembra-nos que cerca de metade da população precisa de ajuda alimentar para poder sobreviver e que os apoios sociais de base, nomeadamente na área da saúde, estão fechados ou à beira do colapso. Com a chegada em breve dos rigores do inverno, a crise tornar-se-á ainda mais séria e menor a capacidade de agir. Anuncia, por isso, que, já na próxima semana, o sistema das Nações Unidas irá lançar um apelo humanitário urgente.

Não é possível prever que resposta conseguirá obter. Uma boa parte dependerá do tipo de acesso que os talibãs permitirão, quer aos funcionários da ONU quer às ONG. Não há ainda nenhuma certeza nessa matéria, incluindo no que respeita à participação de mulheres nas operações humanitárias. A segurança dos agentes encarregados da execução e a possibilidade de atuarem de modo independente são igualmente determinantes. Estas são questões fundamentais, que o secretário-geral terá de resolver antes de lançar o apelo. Não chega fazer uma declaração genérica sobre esses requisitos. São precisos compromissos concretos por parte de quem tem o poder no Afeganistão. Isto significa que é premente iniciar contactos diretos entre as Nações Unidas, ao mais alto nível, e a direção política dos talibãs.

A agenda humanitária é uma boa porta de entrada para conversações mais amplas. É verdade que não se deve misturar o campo humanitário, que tem como objetivo único e primordial salvar vidas, com matérias políticas. A ajuda que atenua o sofrimento humano impede o atrofiamento físico e mental das crianças e mantém vivas as pessoas é um dever da comunidade internacional, independentemente dos sistemas de governação e das escolhas ideológicas. Mas pode possibilitar a abertura de uma via de aproximação e de diálogo político.

Guterres deverá tomar a iniciativa e procurar encetar uma negociação com o poder talibã, que tenha em conta o que as Nações Unidas esperam, em termos de respeito pelas normas internacionais, os direitos humanos e os compromissos que ligam o Afeganistão à comunidade das nações. Por muito que se fale na soberania nacional e na não ingerência nos assuntos internos de cada país, e aceitando mesmo que as relações entre os Estados assentam sobretudo nesses princípios, os tempos de hoje não permitem que se fique indiferente, quando existem violações dos direitos fundamentais das pessoas e situações que possam representar um perigo para a paz e a segurança da região e de outras partes do globo.

Existem muitas pontas por onde começar o desfiar da meada. Uma delas é a proteção dos cerca de 3 mil funcionários nacionais das Nações Unidas, face a possíveis represálias. Outra diz respeito ao futuro da Missão de Assistência que a ONU tem no terreno, a UNAMA. O mandato desta missão expira a 15 de setembro. Que tipo de configuração será possível, depois dessa data? Os talibãs poderão estar prontos para aceitar a presença das agências onusianas mais técnicas ou diretamente ligadas à assistência humanitária. E o resto, as outras agências da ONU? Tem de ser negociado. Uma outra matéria que tem de ser vista é a da representação do país na próxima Assembleia Geral das Nações Unidas, que começa a 14 de setembro. Os talibãs, vista a forma como chegaram ao poder, estarão à partida excluídos de participar, como já aconteceu no passado, no final dos anos 1990 e até 2001. Mas essa exclusão pode ser matéria para pôr em cima da mesa, dependendo das contrapartidas políticas que os senhores de Cabul queiram negociar.

Nestas coisas, o essencial é tomar a iniciativa, recuperar a bola e voltar a pô-la em jogo. A ONU é, acima de tudo, uma organização política. Não pode ser governada apenas com uma agenda humanitária ou de desenvolvimento. É verdade que deve dar uma resposta completa e coerente, que inclua essas dimensões. Mas o motor deve ser político. E o novo desafio talibã oferece à ONU a oportunidade de se reencontrar com a sua história e refazer a sua imagem como protagonista fundamental das relações internacionais.

Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral adjunto da ONU

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