As mulheres por detrás do farol
O CAMINHO sinuoso de terra batida e pedregulho serpenteia pela encosta abaixo até à ponta do promontório onde o farol se ergue como um castelo, com a torre altiva a ser constantemente fustigada pelo vento. Talvez por isso mesmo a esta parte da ilha de Santa Maria se chame Ponta do Castelo, numa espécie de homenagem ao único farol que lá existe. Construído em 1927, o farol de Gonçalo Velho, um edifício que figura entre o património imóvel da Região Autónoma dos Açores, pouco terá mudado desde então.Para o viajante que chega de fora à procura de uma viagem no tempo até um mundo de caçadores de baleias e naufrágios, a maior surpresa será ser guiado por uma mulher.
Goretti Oliveira recebe-nos no alto de uma escadaria que parece maior do que é depois da longa caminhada até à entrada do farol. A farda é obrigatória e não faz distinção entre homens e mulheres. Apenas o cap, o chapéu que a complementa, distingue a faroleira dos outros dois colegas com quem trabalha e vive no farol de Gonçalo Velho.
Quando Goretti Oliveira aqui chegou, em princípios de 2008, não foi uma surpresa total para os marienses ter uma mulher a trabalhar no farol. Antes dela Suzete Melo tinha ocupado a posição fazendo que, para quem vive em Santa Maria, o que era uma raridade já comece a tornar-se normal.
Dos 210 faroleiros a exercer funções em Portugal, apenas três são mulheres. Mais do que um nicho, Goretti Oliveira, Suzete Melo e Ângela Gomes são precursoras. Desde 1970, altura do primeiro curso de formação de faroleiros da Escola da Autoridade Marítima, que as turmas eram compostas apenas por homens. Ainda que a marinha tenha começado a abrir concursos para mulheres em 1992, só em 2004, com a admissão destas três alunas, se começou a usar a palavra faroleiro no feminino.
«Concorri, fiz as provas e nunca pensei se era a primeira ou se era a segunda mulher a fazê-lo. Aliás, só soube que o era quando cheguei à escola», explica Goretti Oliveira, para retirar importância ao feito. Já Ângela Gomes, do farol da Ferraria, sendo filha de um faroleiro estava mais bem informada e também mais desconfiada: «Quando fui para o curso sabia que eles estavam receosos por nos deixar entrar, por isso fui de pé atrás.»
Hoje, com o curso feito e tendo já passado por dois faróis diferentes, as três mulheres são unânimes ao afirmar que foram bem recebidas tanto na escola como no local de trabalho. No que toca a discriminação da parte de colegas ou superiores, «se a houve, nunca me disseram nada», afirma Suzete Melo.
A PRIMEIRA FAROLEIRA de Gonçalo Velho entrou na profissão a jogar em casa. Natural de São Lourenço, em Santa Maria, Suzete Melo já estava habituada a uma vida calma. Mas de serviço naquela ponta isolada da pequena ilha descobriu uma nova profundidade para a solidão. Sem rede no telemóvel e com linhas de telefone temperamentais, os anos em que lá esteve foram difíceis, mesmo quando se está a falar de «uma profissão em que não dá para contactar com muita gente».
A nova faroleira chegou lá apenas dois anos depois, em Fevereiro de 2008, mas com outras condições para lutar contra o isolamento. Goretti Oliveira conseguiu instalar uma linha de telefone de modo a ter acesso à internet e tem o telemóvel pendurado na janela do quarto. «Só ali é que apanha rede. Tenho de usar auriculares para poder fazer chamadas», explica.
É no farol da Ponta do Arnel, em São Miguel, o mais antigo dos Açores, com data de 1876, que Suzete Melo hoje vive com o marido e a cadela Natacha. Os dois colegas com quem divide a supervisão da luz da torre de 15 metros também lá residem com a família, mas entre turnos, férias e a vida de cada um, os contactos por vezes são escassos. «Na semana passada houve um dia em que choveu muito e eu só vi o meu marido.»
Situados em locais inóspitos e de difícil acesso, os faróis foram vistos por poetas e escritores como sítios envoltos em mistério e aventura. Tanto na novela O Faroleiro, da Colecção da Gente Moça, editada em fascículos em 1900, como já em 1973, no conto de Fernando de Araújo Lima, O Faroleiro e o Mar, o guardião do farol é sempre retratado como um velho marinheiro que ali encontra um refúgio do mundo.
«Quando eu era pequena, tinha sempre muitas crianças com quem brincar. Naquela altura, as pessoas tinham mais filhos e nunca me senti sozinha», recorda Ângela Gomes. Entre as suas irmãs e os filhos dos colegas do pai, nos vários faróis onde a sua família viveu «o ambiente era de festa».
Recostada no cadeirão da sala da sua casa no farol da Ferraria, um edifício com espaços amplos e confortáveis, a jovem contradiz a imagem do velho faroleiro resmungão de barbas brancas que fuma cachimbo. Com 28 anos, não dispensa as saídas à noite e a farra com os amigos. A mota Honda Shadow 500 em tons bordeaux, a menina dos seus olhos enquanto esteve colocada no farol de Ponta Barca, na ilha Graciosa, foi entretanto trocada por um carro. Da Ferraria até Ponta Delgada, a maior cidade dos Açores, são cerca de 15 minutos a conduzir. Lá encontra o que o farol não lhe pode oferecer: «Gosto de estar com os meus amigos. Ao fim-de-semana há sempre acampamentos e churrascos na praia e agora abriu um salão de bowling.»
AINDA QUE O FAROL exija cuidados constantes, Suzete Melo, como as restantes colegas, diz que tempo é coisa que não lhe falta. Cada faroleiro cumpre um turno de 24 horas. Quando é outro que está de serviço, os restantes ou estão de folga ou trabalham apenas algumas horas dedicadas sobretudo à manutenção e limpeza do edifício.
No pulso esquerdo, em vez de um relógio, Suzete Melo exibe as palavras Deus, Amor e Destino tatuadas em caracteres chineses como complemento à aliança. «Relógio para quê? Aqui não há tempo! O nosso relógio é o Sol», afirma a faroleira do Arnel.
Como acontece com qualquer outro faroleiro, o turno de Suzete Melo começa com o nascer do Sol, variando conforme a estação do ano. Estando o farol da Ponta do Arnel já automatizado, como a maioria dos faróis portugueses, possui um dispositivo composto por células fotoeléctricas que inicia por si a emissão de luz ao pôr do Sol e a desliga quando este nasce. Daí que, quando chega ao cimo das escadas em caracol da torre que eleva a lâmpada, a sua primeira tarefa seja cerrar as cortinas para que a óptica que projectou luz para um mar de escuridão não concentre os raios solares, elevando a temperatura a ponto de causar um incêndio.
Voltará ao cimo da torre de forma octangular quando o Sol estiver acomodado no mar lá ao fundo do horizonte. Desta vez para abrir as cortinas e soltar a luz do farol para a noite que se avizinha.
A maior parte do turno de 24 horas é gasto com a observação das condições meteorológicas, que são registadas várias vezes por dia no livro de serviço, e com trabalhos de manutenção do equipamento e do edifício. «Não é fácil», desabafa Suzete Melo, quase em suspiro. «Aqui já tive de chapar cimento, meter cabos eléctricos e cortar azulejos.» A prova, para quem dela precisasse, está a poucos metros, na casa onde habitava e que, por estar em obras, a obrigou a mudar-se temporariamente para uma residência vazia do farol. Num quarto despido, o chão de cimento recebe os primeiros azulejos. Terá sido ela a escolher este tom de castanho para o chão? «Não, nada disto é meu.»
Destacados para um farol onde ficam por norma a cumprir serviço durante quatro anos, a vida dos faroleiros é, como Ângela Gomes cedo aprendeu, «quase como a do caracol, sempre com a casa às costas». Se por um lado se diz que a casa é o rebuçado para o faroleiro, verdade é que a maioria dirá o mesmo que Goretti Oliveira se perguntarmos o que lhe faz mais falta: «Eu gostava mesmo era de ter a minha própria casa.»
Para a recém-casada Suzete Melo, mais do que uma casa, o que ela queria era privacidade: «Ouro sobre azul era ir para um farol só com um faroleiro, como o do Cintrão ou o da Ponta Garça, mas eu duvido que ponham lá uma mulher.» Apenas o tempo o dirá, já que a progressão na carreira é feita pelos anos de serviço e a avaliação de cada um.
A FORÇA FÍSICA será o principal argumento de quem duvida de que haja um futuro para as mulheres à frente de um farol, já que os trabalhos de manutenção dos edifícios, na maior parte enfermos com o peso dos anos e a aridez das condições climáticas, podem ser exigentes. «Eu consigo fazer o mesmo que um homem consegue», responde Ângela Gomes aos que dizem que uma mulher não chega para carregar com os baldes de massa de cimento. Mas, apesar disso, a jovem faroleira ainda não acha que esteja preparada para estar sozinha no farol: «Tenho muito para aprender, sobretudo a nível de electricidade, mas também de serralharia.»
Depois do curso na Escola da Autoridade Marítima, em Paço de Arcos, nos arredores de Lisboa, a aprendizagem continua todos os dias na oficina com a ajuda de colegas mais velhos. Apesar de o faroleiro encarnar bem a figura do faz-tudo, há obras que já não realiza, como a impermeabilização da estrutura ou a muda das telhas, seja pela falta de tempo ou pela especificidade da tarefa. Os meses de Verão são anualmente guardados para as obras de que o farol necessita e que o mau tempo depois impossibilitará. Quando o Inverno chegar, todas as obras terão de estar finalizadas e aí os faroleiros praticamente só fazem trabalho de escala.
O tempo morto que se ganha a partir de Setembro é aplicado pelas três mulheres no estudo. Todas são alunas da Universidade Aberta que lhes faculta o ensino à distância. Goretti Oliveira vai começar o curso de Acção Social, Ângela Gomes entrou este ano para Ciências do Ambiente e Suzete Melo é finalista de Ciências Sociais. «Apesar de ser um objectivo pessoal, também me vai servir profissionalmente», explica a faroleira da Ferraria.
As áreas de interesse de cada uma são caminhos diferentes para subir na carreira, seja ela dentro ou fora da marinha. «Se tiver oportunidade de ser promovida para algo melhor, claro», desmistifica Goretti Oliveira. Nenhuma das três mulheres planeou ser faroleira. Gostam de aqui estar, mas já sabem que o futuro é como o mar: incerto.
A faroleira da Ponta do Arnel, na ilha de São Miguel, apresenta-se primeiro como Suzete Figueiredo para logo a seguir corrigir o apelido para Melo. Casada de fresco, a nova condição ainda lhe é estranha. Antes de se dedicar aos faróis, Suzete Melo foi guarda-florestal no parque do Nordeste e foi infeliz – «não gosto de autoridade», confessa. Da experiência guardou apenas Henrique, o antigo colega que foi promovido a marido e vive com ela numa das residências do farol. Com 34 anos, Suzete Melo, natural da vizinha ilha de Santa Maria, sempre soube que precisava do mar para ser feliz. Nas longas horas passadas a olhar para o horizonte, o seu medo não é de tempestades ou piratas, mas que a transfiram para um farol longe do Parque do Nordeste, onde Henrique ainda trabalha como guarda-florestal. Afinal, precisa dele também.
Ângela Gomes só por acaso não nasceu num farol, de resto, passou lá a vida toda. O pai era faroleiro e com ele a família foi correndo e conhecendo as ilhas dos Açores tendo sempre como referência essas torres altas de luz. Ser faroleira, contudo, foi uma feliz surpresa: «Nem ele [o pai] nem eu estávamos à espera porque não havia mulheres nos faróis.» No primeiro curso de faroleiros da Escola da Autoridade Marítima com alunas do sexo feminino, Ângela Gomes foi a melhor da turma e por isso ganhou o direito a escolher o seu primeiro farol. Arrancou para a Graciosa, onde o pai trabalhava quando ela nasceu e onde passou a infância. Aos 28 anos, depois do farol da Ponta da Barca, na ilha Graciosa, trabalha no da Ferraria, em São Miguel. Tal como o pai.
Goretti Oliveira vem de uma família de fardas. É a primeira coisa que diz quando se lhe pergunta porque enveredou por esta profissão. Depois de não ter conseguido entrar na GNR, decidiu arriscar a vida de faroleira, mesmo sem saber muito bem como era o dia-a-dia num farol. Com 32 anos, dos quais quase cinco de profissão, hoje define esse quotidiano como «uma aventura». Se a princípio se estranha que por detrás desta aparente calma haja muitas oportunidades para fazer subir a adrenalina, quando Goretti Oliveira conta que teve de fazer rappel para pintar a torre de 47 metros do farol do Albernaz, na agreste ilha das Flores, a descrença vai-se desvanecendo. No farol de Gonçalo Velho, onde trabalha actualmente, Goretti Oliveira entusiasma-se sobretudo com as tartarugas e os golfinhos que avista frequentemente na vigia diária do farolim das Formigas.
A faroleira mais célebre de todos os tempos chamava-se Ida Lewis e era norte-americana. Depois de o pai ter sofrido um enfarte, em 1853, Ida Lewis tornou-se a primeira faroleira de Lime Rock, em Newport, e entrou para a história pela coragem com que salvou a vida de mais de vinte pessoas.
No Reino Unido, onde a profissão foi extinta em 1998, mulheres houve que foram piratas, mas ninguém do sexo feminino desempenhou oficialmente as funções de faroleiro.
Desde 1974 que em Espanha as mulheres se ocupam dos faróis e ainda hoje são muitas as que neles habitam e trabalham.