A 20 de fevereiro de 1962 um pequeno engenho espacial orbitou por três vezes o planeta Terra a uma velocidade superior a sete mil metros por segundo. A bordo da cápsula Friendship 7, viajava o astronauta John Glenn, então com 40 anos. O périplo de cinco horas, 265 quilómetros acima da superfície do planeta, fez de Glenn o primeiro norte-americano a orbitar a Terra. A palavra sucesso colou-se ao projeto Mercury, iniciado em 1958 pela então recentemente criada NASA. A solidão do astronauta em viagem vertiginosa acima da atmosfera terrestre contrastava com milhares de técnicos e cientistas que garantiam em terra o sucesso da missão..Entre eles, três afro-americanas com cargos de relevo na NASA. Katherine Johnson, matemática e física, Dorothy Vaughan e Mary Jackson, ambas matemáticas, trabalhavam nos cálculos complexos que permitiriam, em segurança, concretizar a órbita de John Glenn. Numa América do início da década de 1960 atreita a segregação racial e sexual, os três computadores humanos da NASA, a par com dezenas de outras mulheres, operavam na semiclandestinidade. A disputa espacial que opunha os Estados Unidos da América à União Soviética requeria génio e mão-de-obra. Katherine, Dorothy e Mary seriam recordadas já no século XXI na escrita biográfica de Margot Lee Shetterly, norte-americana que assinou o livro Elementos Secretos, adaptado ao cinema em 2016..O episódio no feminino dos "computadores humanos" norte-americanos não é capítulo singular na história da exploração e conquista espaciais. Recuemos no tempo, para nos situarmos na Escócia no ano de 1857. Nascia então Williamina Paton Stevens que, após estudos, ingressou na carreira de professora. Aos 20 anos, Williamina cunhou novo apelido ao casar-se com o contabilista James Orr Fleming. Já com o apelido Fleming, Williamina viajou com o marido para Boston, nos Estados Unidos onde, quis o infortúnio, a jovem escocesa ficou ao abandono. À jovem, grávida, restou-lhe servir como empregada doméstica. Williamina escolheu a casa certa. No final da década de 1870, a escocesa radicada nos Estados Unidos não imaginaria que nos 30 anos seguintes teria um papel fulcral na catalogação do espaço no já então próspero Observatório Astronómico da Faculdade de Harvard, no estado do Massachusetts. .A casa que acolhera Williamina era posse de Edward Charles Pickering, professor de astronomia e Diretor do já citado observatório astronómico. Porta aberta para a carreira de Fleming. A conselho da sua mulher, Pickering acolheu a jovem escocesa como funcionária administrativa no observatório. Corria 1879 e o astrónomo procurava, desde 1875, mão-de-obra para catalogar o imenso acervo de chapas fotográficas que capturavam a imagem de estrelas no espaço profundo. Face à multitude de dados para analisar, Pickering contratou, a partir de 1881, um grupo de mulheres pioneiras na fundação da Harvard Computers. Numa época em que o trabalho feminino era visto com desdém, para mais nas ciências, Pickering encontrou no labor das mulheres um recurso barato, encaixável no curto orçamento de que dispunha. Num gabinete instalado no observatório, as sempre candidatas a astrónomas (raras vezes faziam observações telescópicas), descobriam novas estrelas, estudavam espetros estelares, contavam galáxias, percorriam com os olhos, através da astrofotografia, milhões de anos-luz no seio do universo. Até à sua extinção em 1927 a Harvard Computers contratou perto de 80 mulheres para rastrear o espaço..No "Harém de Pickering", como depreciativamente era conhecido o grupo de mulheres a operar para o astrónomo norte-americano, ingressou Williamina Fleming que cedo se destacou. Desde 1879 Pickering instruía a escocesa na análise de espetros solares..Nos anos seguintes, o "computador humano" catalogou milhares de novas estrelas, perscrutou dezenas de nebulosas, foi encarregue do projeto de desenvolvimento de um sistema de classificação de estrelas patrocinado por Mary Anna Draper, a abastada viúva de Henry Draper, médico e astrónomo amador, pioneiro na astrofotografia. Entre as conquistas de Fleming está a descoberta, em 1888, da nebulosa Cabeça de Cavalo, nuvem escura de plasma, poeiras e gases, aconchegada na Nuvem de Orion, a 1500 anos-luz da Terra..Do anonimato do gabinete da Harvard Computers, Fleming conheceu a ribalta enquanto curadora de fotografia astronómica em Harvard, isto em 1898. Cinco anos antes, Williamina discursara na Feira Mundial de Chicago, que celebrava os 400 anos da chegada de Cristóvão Colombo ao Novo Mundo. Discurso que salientou a importância da abertura da astronomia ao trabalho das mulheres. .Williamina morreu em 1911. Trazia, então, o estatuto de membro honorário da Royal Astronomical Society, sediada em Londres. Longe da capital inglesa, a mais de 384 mil quilómetros do planeta Terra, Fleming é recordada desde 1970. Nesse ano, a cratera 203, no lado oculto da Lua, foi rebatizada com o nome da mulher que 97 anos antes chegara anónima aos Estados Unidos..Após extinção em 1927, a Harvard Computers caiu no anonimato nas décadas seguintes. Em 2015, Lindsay Smith Zrull, curadora no Observatório Astronómico de Harvard, resgatou dos arquivos da instituição milhares de cadernos com as anotações das mulheres que trabalharam no projeto de mapear o espaço, assim como perto de meio milhão de chapas fotográficas. Lindsay supervisiona a equipa de digitalização no Harvard Smithsonian Center of Astrophysics, contando com o apoio do projeto PHAEDRA, que cataloga, digitaliza e preserva o legado das caçadoras de estrelas.